Carta ao Estuprador

“Até hoje, 15 anos depois, não consigo conviver perfeitamente comigo mesma. Às vezes, quando me olho no espelho, vejo-me suja, encardida. Começo a chorar e, num rompante, voo para o banheiro.

E é enquanto me esfrego até quase arrancar a pele que voltas em minha mente. Sabias que nunca se passou um dia sem que eu o visse? Sem que eu o sentisse violando a minha privacidade? E saibas que o que me impede de esfregar isso em tua cara é saber que era isso que querias.

Ser lembrado.

No início eu sentia dificuldade em simplesmente conversar com as pessoas. Arrancaste de mim todo prazer, toda afeição, pelo outro. Violando minha privacidade, rasgando-me por dentro, não removeste apenas a minha inocência ou a minha integridade.

No momento que teu membro entrava, saía o brilho dos meus olhos. O prazer da minha mente. A chama vital da minha alma.

Confesso que não apenas uma vez tentei suicídio. Mas tenho certeza que nunca consegui porque era impossível.

Não se pode matar o que já está morto.

Passei anos sem conseguir estar no mesmo lugar que tu. Anos frios, conturbados, que poderiam – e seriam – totalmente diferentes se não existisses. Se jamais tivesses vingado. Aborto desperdiçado!

Apesar disso, sinto informar que eu consegui amenizar as lembranças. Encontrei homens sérios, dispostos a me ajudar. Homens que, ao contrário de ti, são capazes de fazer com que uma mulher lembre-se deles até o fim da vida.

Sem ter que recorrer à Violência, claro.

Passei os últimos cinco anos fora do país. O mais longe possível do lugar que eu outrora chamava de lar. O mais longe possível do idiota que eu chamava de namorado.

Voltei calma. Anos de Terapia são milagrosos. Deverias tentar fazer! Talvez, por meio dela, consigas se encontrar. Eu consegui e, na medida do possível, tento pensar em ti como alguém normal.

Alguém amável.

Não houve momento de paz para mim após aquela noite. O Estupro é um estigma. E ainda hoje sou estigmatizada. Ainda hoje sofro por causa disso.

Quando saíste, eu senti medo. Estava aterrorizada. Não sabia para onde ir. Vaguei em um estado de inconsciência até chegar em casa. E foi lá onde, debaixo do chuveiro, eu comecei a imitá-lo.

Chorava eu. E minhas lágrimas escorriam como a água do chuveiro - meu melhor terapeuta - até o ralo, um dos lugares onde elas eram melhor aceitas.

Afastei-me do social. Pessoas me aterrorizavam. Até hoje aterrorizam um pouco. Mas, felizmente, eu consegui voltar a me erguer.

Sim, me ergui. Mas saibas que custou todo o resto de força que eu não tinha e mais um pouco. E, quando começava a ensaiar uns passos, vinham com argumentos inúteis:

'A Culpa foi Sua!'

'Que fazia tão Tarde?'

'Deu porque quis e agora se faz de vítima para conseguir atenção.'

Cada frase, por mais irracional que fosse, machucava-me mais. Estuprava-me um pouco mais. E, do nada, eu comecei a acreditar que a culpa era minha.

Que, talvez, eu queria aquilo que me deras...

Hoje, quando voltei à minha cidade natal, vi que estavas casado. Que tua esposa era bela e que tinha te dado uma belíssima filha.

Espero eu que tenha sido tua única cobaia. Espero que tenhas parado com isso, mesmo após ter ouvido algumas conversas desagradáveis.

Caso algum dia leias essa carta aberta, esse manifesto popular, peço apenas uma coisa: Quando vires uma mulher, qualquer uma, e a desejares além da minha compreensão, além da tua compreensão, clamo-te que lembres de tua mãe, que lembres de tua esposa.

Que lembres de tua filha.

Que te recordes de mim.

Pois, para a vítima, não haverá mais calma após a tormenta. Pois a Tormenta, ao menos no meu caso, me acompanhará, fiel companheira, até que a Morte me livre dela...”