Explicando a minha ida

Ouço um ligeiro barulho vindo do lado de fora da casa. Ao abrir a porta, me deparo com uma carta jogada no chão. O envelope é azul claro, lembro rapidamente que azul sempre foi a cor favorita dela. Apanho-o, e ele tem cheiro de cereja.

"Uma explicação", está escrito com sua caligrafia torta. Meu coração dá leves pulos. Começo a ler.

"Ah, oi. Como você está? Espero que bem, porque lembro que quando saí por aquela porta, havia lágrimas em seus olhos. Afinal, sinto muito por ter feito aquilo, por ter magoado-o. Jamais foi minha intenção arrancar lágrimas de você. Precisei ir. Você sabe que precisei. Estou escrevendo depois de quase três meses, e isso é estranho. Parece que foi ontem mesmo a última vez que te vi. Não espero que me perdoe por ter ido embora, vou sempre repetir que foi extremamente necessário. Nesse momento estou hospedada em um hotel de nome estranho na Itália. Aqui é incrível! Nesses últimos meses viajei por muitos países, e tudo isso é fantástico! Me sinto livre, como um pássaro que descobriu como é bom voar. Admito que ao seu lado eu fui feliz, mas também preciso admitir que faltava algo. Desculpa dizer isso, mas não podemos viver um amor que nos prende. Você queria me prender a uma vida pacata, sem grandes expectativas, e muitas vezes até reclamou por meu universo não ser limitado. Não entendo até hoje como pude me apaixonar por alguém tão raso. Nada contra a quem planeja viver em uma casinha qualquer no final da rua, tendo um trabalho fútil, tendo que aguentar vizinhos desprezíveis e fazendo sempre as mesmas coisas, mas isso nunca foi pra mim. Minha meta de vida sempre passou bem longe disso. Você sabia, eu contei uma vez, mas você me interrompeu, beijou-me e disse 'não fala besteira'. Naquele momento eu deveria ter falado, falado mesmo, e não me calado. Me calei diversas vezes por você, e em todas as vezes isso foi um erro. Minhas metas de vida sempre foram 'viver da melhor forma que eu puder', e isso envolve conhecer o mundo. Conhecer pessoas novas, costumes novos, paisagens novas. Talvez você nunca entenda o quanto isso é satisfatório. Tenho certeza que nesse momento você já está deitado naquele sofá marrom horrível, lendo isso indignado. Não peço que não me odeie, peço que entenda. Saí sem uma explicação, mas você sabia. Sabia que eu era incapaz de viver com alguém que queria apenas diminuir meu mundo, me limitando o tempo todo. Sou muito mais do que isso. Muito mesmo. Achei que, pelo tempo em que duramos, você merecia uma explicação. Quero que saiba que minha vida está incrivelmente incrível. Estou feliz como nunca estive, e ocupada demais amando apenas uma coisa: viver. Todo mundo deveria amar viver. Amanhã viajo novamente, e depois de novo, e vou continuar assim. Vivendo um dia de cada vez. Você deveria fazer isso também, viver o máximo que puder. Deveria viver como nunca viveu, querido ex amor. E se conseguir, aproveite a felicidade.

Ps: nadei com golfinhos! O mundo dentro do mar é esplêndido!"

Termino de ler a carta e fico sem reação. Penso e penso, mas não chego a nenhum conclusão. No final do dia, penso que talvez ela tenha razão. Talvez eu nunca tenha vivido de verdade. Deito no sofá marrom de novo e olho o teto. Fico aqui mesmo.

Gente que nasceu para ser apenas mais um vivendo é assim mesmo, sempre vai deitar no sofá e relaxar, esperando que um dia algo bom caia do céu.

Leticia Moura
Enviado por Leticia Moura em 26/09/2016
Reeditado em 26/09/2016
Código do texto: T5773431
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