Codinome Dinna

26/11/2015

Não deve se lembrar de mim. Admito que demorei um tempo refletindo sobre o passado e sobre as cartas que recebi para então lembrar de você. Há dois anos te enviei algumas cartas, das quais não lembro o conteúdo e não as tenho comigo. Tudo que tenho são as cartas que recebi de ti, para conhecer-te melhor. Contudo tudo que lembro é de ser sincera, e farei o que puder para manter isso agora.

Antes de mais nada, me chamo Dinna, estou na faculdade e tenho 19 anos agora. A primeira vez que escrevi para você, eu ainda tinha 16 anos e tinha acabado de mudar para esta mesma casa. Parece extremamente apropriado escrever antes de partir daqui.

Gostaria de poder dizer que as coisas mudaram pra muito melhor, e que hoje estou vivendo tudo que sempre sonhei, afinal quase três anos se passaram e muita coisa devia ter acontecido.

O grande fato é que realmente aconteceu muita coisa. Algumas muito boas, e algumas muito ruins. Vou me atentar ao presente, e caso haja necessidade, voltamos a alguns fatos no passado.

Como disse anteriormente, estou me mudando. Voltarei pra casa que morava antes de vir pra cá, e em breve me mudarei para o bairro onde nasci. Estou bastante ansiosa com a mudança, e essa ansiedade oscila muito entre boa e ruim, desde apenas uma comoção pelo novo quanto terrores noturnos, pânico e o medo constante do que virá a seguir. Acontece que quanto mais penso na mudança, mais penso no motivo que me levou a ela, e é nesse momento que a ansiedade me consome.

Os fatos concretos e bem descritos, deixo de lado por agora, mas pra resumir, eu perdi algumas pessoas. E nenhuma delas foi para a morte. Não consigo decidir se isso é bom ou ruim. Falam-me sobre a esperança que a morte não proporcionaria. Eu, pessoalmente, não vejo nada mais que um caminho escuro diante destas perdas.

Para que seja melhor explicado, vou explicar como perdi cada um.

Perdi a primeira pessoa quando a bomba estourou, e foi a perda que mais me doeu. Lembro-me perfeitamente do telefone tocando, e do rosto do meu irmão sentado no sofá falando com a pessoa do outro lado da linha. Eu não sabia quem era, não sabia do que se tratava, mas senti algo errado. Uma pulga me inquietou, mas me recolhi. Não demorou muito e ele veio me dizer o que havia de fato acontecido. Sintetizando a situação, eu estava veementemente proibida de me comunicar com a "primeira pessoa".

Acontece que a primeira pessoa não foi uma pessoa qualquer. Quando minha psicóloga pediu para descrever o que tivemos, só soube dizer palavras positivas, e dentre elas "intenso e verdadeiro". Ela fazia com que eu me sentisse única, e não me fazia odiar a mim mesma, como a maioria das pessoas costumavam fazer. Pela primeira vez eu passei a pensar um futuro como "nós", e não mais como "eu", e principalmente não pensava em fugir ou me guiava pela constante pulsão de morte.

Estou de volta ao "eu" agora, e não sei quanto tempo vai durar até isso parar de me magoar. Temo que a morte se torne tentadora novamente, depois de tantos anos. Queria poder deixar as coisas se resolverem da maneira mais romantizada possível, mas infelizmente não é possível. Por conta de ameaças contra nós duas, estou impossibilitada de ao menos dizer adeus.

É isso que dói mais. Eu entendo que as pessoas podem não ficar juntas para sempre, entendo muito bem. Mas não ter um momento ou uma situação entre o "nós" pra dizer que acabou é bastante difícil. Não houve momento ou situação ruim que eu pudesse me agarrar e dizer "É, que bom que acabou". Não houveram brigas. Não houve nada!

Eu estou tentando ser forte, pelas lembranças. Pensar nela como uma forma de me fortalecer. As vezes eu consigo, as vezes não. Ando bem confusa ultimamente. Só sei que dói, dói demais. Não consigo nem mesmo me lembrar do rosto dela, de seu sorriso, de sua voz. Mesmo que praticamente todas as noites ela me visite nos meus sonhos, e seja tirada de mim, de novo.

E de novo.

E de novo.

E de novo. Todos as noites, como se minha cabeça se recusasse a esquecê-la, ao mesmo tempo que a apaga de mim quando meus olhos estão abertos.

Perdi a primeira pessoa porque a segunda e terceira pessoa não gostavam dela, ou gostavam por um tempo, antes de demonizá-la. E assim, eu os perdi também.

Eu não era mais tão próxima da segunda pessoa há alguns anos. Por isso me espanta tanto o quanto a perda me afetou.

Ele é meu pai, e sempre foi um homem muito ocupado com o trabalho. Tem o jeito durão dele, meio distante, mas se preocupa o bastante pra fazer muito por mim. Nunca deixou faltar nada, e sempre deu tudo do bom e do melhor.

Éramos muito próximos quando eu era mais nova, e quando eu morava longe. Quando eu me mudei pra cá, fomos ficando cada vez mais distantes, até nossos diálogos se resumirem a um bom dia e um boa noite automático e frio.

Ele foi quem descobriu sobre a primeira pessoa e eu. E - dói admitir - foi quem me colocou onde estou hoje e me provocou toda essa dor. Entendo sua atitude. Entendo porque fez isso. Entendo sua cabeça, seus pensamentos, seus medos e preconceitos. Mas não concordo. Nunca vou concordar.

Não darei detalhes, novamente. Não me sinto pronta nem mesmo para falar disso à minha psicóloga, que dirá para alguém numa carta. Mas vou explicar como o estou perdendo em alguns estágios.

No primeiro dia, ele me odiou. Me deu uma bronca como se eu tivesse matado alguém, como se eu fosse contagiosa, e mal podia olhar na minha cara. Não foi tão ruim, porque era isso que eu esperava desde o momento que eu supus que isso podia acontecer algum dia. O problema foi quando a situação mudou.

Ele voltou a falar comigo, e aos poucos voltamos a ter uma relação "amigável", com seus limites traçados pela confiança quebrada e pelo orgulho. E este é o grande problema. "Amigável" não nos define. Conversamos. Ele se preocupa se estou bem ou não. Mas "amigável"? Talvez seja forçar demais...

Vi meu pai com os olhos marejados hoje, pouco tempo depois de eu colocar as últimas caixas da minha mudança perfeitamente empacotada em poucas horas na sala de estar. Pode ser que ele tenha espirrado ou pingado colírio no olho ou qualquer outra coisa que explique o que aconteceu, mas me conforta pensar que ele vai sentir minha falta, apesar de tudo. Apesar dele me odiar.

E mais uma vez, em contrapartida com os sentimentos bons, sei que já o perdi. Por mais que ele tente fingir, que ele haja como se estivesse tudo bem, elas não estão. As coisas nunca mais serão como antes. Se as coisas tivessem a mínima chance de melhorar, ele não teria me pedido pra eu ir embora.

É, foi o que aconteceu.

A segunda pessoa descobriu sobre a primeira.

A segunda pessoa me odiou.

A segunda pessoa tentou fingir que tudo estava bem.

A segunda pessoa me pediu para partir.

No enlaço dessas perdas consecutivas, perdi a terceira pessoa. Ainda não consegui decidir qual o nível dessa perda, se ela ocorreu mesmo, ou o que diabos está acontecendo. Mas o luto está ali, porque no presente momento, eu a perdi.

Esta é minha mãe, que chorou pedindo para que eu não fosse quem sou, que disse que me abandonaria caso eu não mudasse, mas que agora diz que me ama oito vezes a cada ligação e que parece mal se lembrar de tudo que aconteceu. Ela parece feliz. Parece esperançosa. Parece cega e alheia, mas incrivelmente contente com as consequências.

Isso me mata a cada dia mais, pois sei que ela está cheia de mágoa e ódio, e que qualquer deslize vai ser rebatido com vingança. Sei disso, sei muito bem, porque vi os números de telefone da primeira pessoa (celular, casa e trabalho) guardados na agenda do celular e anotados num papel no porta jóias dela. Ela já havia ameaçado a primeira pessoa, havia ligado, ofendido, dito que ela havia me adoecido para eu ser quem sou. Por medo disso não digo adeus a primeira pessoa. Eu a amei. Amo. E o que eu seria se me entregasse ao desejo de me despedir e isso acabasse gerando consequências? Eu não me perdoaria.

Apesar das ameaças e de todo o ódio que vi na terceira pessoa, estou confiando cegamente no meu futuro com ela. Quero começar de novo, do zero. Mudar de faculdade, conhecer novas pessoas, me permitir não sofrer mais. Ser normal.

Ando me confortando nisso. Não sei onde vou poder ser feliz no futuro, mas estou apostando em ficar perto dela nesse novo lugar para ser meu primeiro passo. Parece louco, eu sei. Mas faz sentido pra mim.

A quarta pessoa foi a mais inesperada, e eu ainda custo a acreditar que tenha realmente o perdido.

Perdi meu irmão, mesmo depois de vê-lo chorar diante da situação.

Nos primeiros dias, ele foi meu porto seguro, e o único que podia me fazer bem. Ele era tudo que eu tinha, tudo que me havia restado. Ele era minha esperança.

Mas ele se afastou assim... subitamente.

Um dia ele expôs o que pensava pra mim, e eu não soube muito bem como responder. Eu não estava bem naquele dia - eu não estava bem há dias, sem saber como reagir a tudo que estava acontecendo comigo.

Eu o entendo! Sei o que estava tentando fazer ao se afastar, mas eu tenho motivos! Tenho sentimentos!

Ele queria que eu confessasse. Que eu gritasse que aquela era eu. Queria que eu me abrisse, doa a quem doer. Disse que ficaria comigo e que me ajudaria. Mal ele sabe que isso é o que eu mais quero.

Mas, caso eu fizesse as vontades dele (e que de certo modo, eram as minhas), poria em risco todo o futuro dele. Porque ao me apoiar, dizendo ou não quem era, ele ia perder tudo. E nós éramos muito parecidos nessa situação para eu arriscar.

Disse uma vez pro meu irmão que eu estava tentando fazer as coisas afim de machucar o mínimo possível as pessoas.

E ele me disse que sou indiferente.

E agora estou indo embora.

Porque não consigo superar as lembranças que esse lugar tem da primeira pessoa.

Porque a segunda pessoa não me quer aqui.

Porque posso começar do zero com a ajuda da terceira pessoa.

Porque preciso evitar, a todo custo, magoar mais e prejudicar a quarta pessoa.

Porque eu preciso cuidar de mim.

E porque eu não aguento mais.

Disse pro meu irmão uma vez que se eles queriam a filha depressiva, eles a teriam, como uma vingança pra ver que haviam me feito mal.

Eu estava triste, mostrei minha tristeza. O problema é que continuo triste agora, e estive todo o tempo. Não sei em qual momento eu parei de fingir, pois não consigo mais parar.

Queria poder passar a madrugada dando risada com a quarta pessoa, rindo mesmo apesar das desgraças. Sei que ele não me odeia. Perguntei pra uma amiga dele pra saber se ele estava bem, e ela disse que meu irmão estava apenas chateado, mas que me amava. Mas chateado com o que? O que eu fiz?

Por favor, parem de jogar a culpa em mim! EU ESTOU TENTANDO ME CONSERTAR.

Queria poder me reaproximar da quarta pessoa, mas não posso. Não consigo. Sou errada. Sou suja. Ele não merece isso.

Eu nem sei mais quem ele é, se ele me quer por perto. Não sei mais pra onde ele vai, o que assiste, o que faz no tempo livre... Só sei quais músicas escuta porque as paredes são finas demais, e mesmo assim, estamos muito mais diferentes do que nunca fomos.

De certo modo, quero que ele siga em frente e seja completamente feliz, como ele merece.

Uma vez eu disse pra primeira pessoa que meu irmão era uma das poucas pessoas que me afetava, e eu odeio como isso é verdade.

Não vou falar com ele, e sei que ele também não. Nem quero, porque é arriscado. É seguro.

Eu ando com medo demais desde que a bomba estourou. Tive mais crises de pânico nesse um mês e pouco que no resto da minha vida. Me tranquei no banheiro do meu quarto chorando porque tinha certeza que tinham invadido a casa. Me retirei correndo da sala pelo menos umas cinco vezes porque senti que tinha alguém aqui me observando. E acordei de pesadelos, chorando, várias vezes.

Na rua, confiro minhas costas toda hora (mais que costumava fazer). Tento decorar os rostos nos ônibus, pra poder verificar se uma pessoa não estaria me seguindo. Chequei a janela do meu quarto antes de dormir porque achei que pudesse ter algum tipo de vigia. Não usava palavras suspeitas, nos primeiros dias, ao conversar pela internet, porque alguém poderia ler.

Foi um certo alívio misturado de pânico quando meu celular foi roubado. Pânico porque foi um assalto, oras. E alívio porque não haveria ninguém hackeando minhas coisas.

Meu irmão sabe dos meus problemas. Ele viu o adesivo cobrindo a web cam do meu notebook. O que sinto agora, é só um estágio um pouco avançado dos meus medos.

Mas não pense que as coisas são apenas negativas, não. Os problemas só surgem quando estou sozinha agora. Não choro mais na rua ou na faculdade.

Meus alunos me confortam, e me fazem muito feliz. Meus amigos da faculdade cuidam muito bem de mim. Eles me dão esperança.

E minha segunda família... Ah, elas sempre estão comigo. Não as posso abraçar, apesar de ser tudo que mais desejo até nos meus melhores dias. Mas elas estão lá. Eu as amo tanto... Acho que são a única família que me resta.

Sei que tudo de ruim que sinto hoje é resultado de lembrar demais. Os momentos, as sensações, as promessas e sei lá, até o cheiro, parece estar impregnado em mim. Ao mesmo tempo que eu não lembro de nada, como se fosse tirado de mim a força.

Por isso estou indo embora. Preciso começar minha vida do zero, e tentar me salvar.

Os remédios me ajudam a manter a calma na maior parte do tempo, e a psicóloga me ajuda a manter a calma quando os remédios já não podem ter êxito.

Mas eu vou ficar bem, sei disso.

Não hoje.

Nem amanhã.

Mas um dia.

Eu juro.

Me desculpe.

Estou tentando sobreviver.