CARTA A UM NARCISISTA que eu jamais vou mandar

Caro abusador

Eu já não penso em você todos os dias. Já faz mais de um ano que disse basta a nossa relação doentia. Já nao dói mais, e já até me apaixonei de novo. Hoje porém escutei uma música que nao ouvia há tempos. E a música, assim como os cheiros, tem o poder de evocar nossas memórias mais profundas.

Estava dirigindo para o trabalho. E ao recordar você... eu chorei. Não de saudade. Não de tristeza. Mas de emoção.

Você jamais vai ler essas linhas porque você nao tem profundidade emocional pra acompanhar e entender. Eu aprendi isso. Por isso vou escrever para minhas companheiras de jornada que me apoiam e me dão suporte nesta caminhada.

Caro abusador... Eu aprendi tanto! Descobri a velocidade com que se sobe ao céu e desce ao inferno com você. Eu me conheci. Eu conheci pessoas incríveis. Descobri um novo mundo de conhecimentos.

Eu conheci a dor. A dor do abandono. A dor da vergonha. A dor da desilusão. A dor física e emocional da depressão. E assim eu aprendi a respeitar a dor do outro.

Eu tive crises. Infindáveis crises de ansiedade que me levaram ao psiquiatra, antidepressivos e terapia. Elas ainda vêm às vezes e eu aprendi a me controlar e respeitar meus limites.

Com as crises, eu descobri minha fragilidade enquanto ser humano. Minha fraqueza, co-dependência, empatia disfuncional. Eu descobri os porquês. Isso me fez respeitar mais a fragilidade do outro e entender que cada um de nós esconde um universo dentro de si.

Eu descobri um mar de mãos estendidas. Mãos desconhecidas que muitas vezes me salvaram. E assim eu tive desejo de estender a minha também.

Eu descobri que se não morri de desilusão por sua causa, não morro mais. Tudo passa. A dor passa se a gente se movimenta na direção da cura. E assim eu descobri a força dentro de mim. Ela tomou forma e hoje é real.

Eu vi pessoas sofrendo por mim, eu vi pessoas me virando as costas. Você foi um filtro que me fez peneirar minhas relações pessoais. Eu descobri que as vezes um irmão é um desconhecido e um desconhecido pode ser mais que um irmão.

Eu entreguei a você, caro abusador, meus sentimentos mais nobres. Em minha alucinação romântica induzida, eu enxerguei você muito maior do que você realmente é. Eu enxerguei coisas boas em você. Enxerguei potencial e futuro. Eu estava errada. Mas descobri um segredo inestimável: eu tenho sentimentos nobres. Independente do que o outro faz com ele, meus sentimentos sao nobres e bons. Eles são verdadeiros, ainda que você não o seja.

Eu aprendi a delimitar melhor para quem eu entrego meus sentimentos nobres.

Eu aprendi o valor do amor próprio. O valor de se saber a hora de simplesmente parar e abandonar a batalha por amor à própria vida. Aprendi assim que nao posso mudar as pessoas. Elas sao donas delas mesmas e tenho limites de atuação e de poder de ajudar. Isso não me tortura mais. É uma balança muito importante para o resto da minha vida.

Nao sei, caro abusador, quando vou lembrar de você de novo. Pode ser que alguma outra música, lugar, cheiro ou situação me traga você. Mas quando isso acontecer, nao terei pesadelos, nao terei crises, e se precisar chorar, chorarei.

Eu poderia citar ainda, caro abusador, uma lista infindável de aprendizados valiosos que descobri na experiência catártica de me relacionar com você. Agora me basta, porém, dizer que eu não nego mais meu passado. Não nego minha humanidade. Não tenho vergonha da sua passagem pela minha vida. Isso porque, ainda que frágil, com cicatrizes, e reaprendendo a andar, eu me tornei uma pessoa muito melhor depois de você.

Música I don't whant to talk about it. Rod Stwart.