Enganam-se. Enganam-me

Enganam-se. Enganam-me.

Um dos piores sentimentos que pode-se ter em uma dança a dois é o egoísmo. Quando o outro já não se importa em pisar nos seus pés descalços, ou em desligar a música antes de saber se você realmente acabou de dançar. Não avisar a quem não se ama mais que você já não escuta a música que ele tanto tenta reiniciar é cruel.

É cruel porque estraga toda a coreografia anterior, o que era pra terminar com um agradecimento e um aperto de mãos, sem desassossegos, acaba chegando ao fim com alguém despedaçado e com o coração cheio de mágoa, e mexer com o coração sensível é bicho perigoso.

No coração sensível sempre há pressentimentos, o que não significa estar preparado. Quando o fim é inevitável, sempre sabe-se que em algum momento rumos diferentes serão seguidos e têm-se a falsa impressão de que essa consciência facilitará as coisas. Enganam-se. Enganam-me. O sentimento e a dor são os mesmos, porque o fim sempre dói. Não importa se em algum momento se pensou que já não havia mais amor, o monstro do desamor vai sempre perseguir e fazer com que se acredite que estar enganado sobre ele, ainda que não esteja.

Não importa se quem participa do (des)espetáculo amoroso não estava gostando da música (ou da dança), a quebra da rotina sempre vai fazer um estrago. A ausência vai ferir. E você sempre ficará despedaçado e precisará se (re)montar e se (re)descobrir. Pensa-se que a quantidade de vezes que se cai de um penhasco faz com que o corpo se acostume até chegar um momento em que a dor não é mais que o latejo. Engam-se. Enganam-me. O corpo, a queda e a dor ainda são os mesmos, o que muda é apenas a consciência. Numa hora cai-se gritando e implorando que lhe peguem de volta, noutra cai-se em silêncio. E cai-se em silêncio porque sabe-se que não há mais para onde caminhar sozinho.

Nina Cerqueira
Enviado por Nina Cerqueira em 23/07/2019
Código do texto: T6702284
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.