A 4 mãos

Cinquenta e cinco dias …

Sem um diário de bordo fechada aonde ou quando me permitem escrever

Em sentimentos e momentos meio obtusos que me correm algures em mim, meio confusos, um turbilhão por vezes, ou antes, a maior parte das vezes.

Precisava de um gravador que me guardasse tudo o que passa por aqui, como a foz de um rio, que vem de dentro e desagua no papel, porque eu não apanho tudo, não apanho quase nada, e quando tento já não trago nas mãos o que por ali correu.

Não sei escrever

Não sei acompanhar tudo o que conjuga a minha vida ou a vida dos outros, perco-me, como me perco em tudo e nas dezenas de vontades que tenho de sonhos a realizar que são inúmeras vezes empatados por algo ou alguém que se tropeça em mim.

E eu sou muito distraída, distraída com qualquer coisa, com a natureza das coisas, as mil e uma ideias que me ocorrem, a necessidade dos outros, a disponibilidade e a energia que me faz voar, porque nesta cabeça tudo é possível, com a intensidade que acredito na morte como na vida, na crença das margens diferentes do rio ou os ideais tão díspares entre si.

Adoro música, a entrega que ela proporciona, adoro dançar sem que ninguém veja, adoro articular os ossos em função do meu coração e do que ouço, adoro fechar os olhos e ver o mar, mesmo não estando de frente para ele.

Porque é possível sonhar

E todos os dias sonhos com um mundo melhor, embora o nosso, é o melhor que conheço dos outros, mas vou mais além.

E eu sou uma pessoa de pessoas

Sou de tato

Sou de olhos nos olhos

Sou de grito e gargalhadas sonoras.

Sou. Sou luz que vem de dentro e chora quando não ilumina a terra como queria, mesmo que a minha terra seja um metro ou como milhares de quilómetros, porque cada um de nós tem a sua terra, e esta está sempre dentro de nós, e a minha cheira a terra esbatida e molhada.

Sou meio agridoce, eu sei…

Assusto por vezes, porque sou meio doce ora amarga quando me apetece

Porque faço o que quero

Mesmo que essa liberdade tenha o preço da perda alguma vezes.

Cinquenta e cinco dias e tenho escrito mais do que os últimos dez anos, dez anos marcados pela perda de um dos maiores amores da minha vida, carne da minha carne e o mesmo sangue, foi por ela que peguei na caneta, no papel, e relatava a saudade incomensurável.

E continuo a falar dela, mesmo que estejam todos fartos de ouvir, de ler.

Ela vive comigo e em mim e vou carrega-la para o resto da minha vida, como quem carrega um bebé na barriga, porque mesmo quando eles nascem ficam sempre ligados a nós, um cordão umbilical invisível.

Adoro escrever apesar de não o saber fazer como deve ser, mesmo quando os lanço sem reler, sem pensar, sem corrigir, com erros ortográficos e falta de pontuação.

Porque a minha escrita é como eu, um turbilhão que se tropeça tantas vezes, meio impulso, meio primário e acreditem que também sou um erro de ortografia tantas vezes e deixo metade da vida em reticências.

Eu continuo a acreditar que quero dizer tudo antes que a voz me falhe, os dedos desfaleçam ou a memória me apague.

Sou assim com tudo, sou assim com todos, um amor louco, desvario, meio insano, o meu sentido da vida.

Adoro viver, mesmo quando a tristeza me varre ou a depressão contínua de não conseguir fazer tudo e estar em todo o lado me preenche e me deixa num vácuo sem fim, sem luz.

Para mim escrever é uma terapia, um suspiro mesmo quando ninguém entende, mesmo que haja impaciência ou dúvidas, é um medo que me persegue desde criança, medo que conhecessem o que me ia na alma e soubessem que tudo o que eu era na verdade tinha tão pouco de mim, porque a verdade estava fechada num canto do coração, nas pálpebras ou no escritório do meu pai aonde eu escrevia horas infindáveis.

Ser adolescente foi dos maiores panoramas de terror que vivi, foi o querer ser outra, foi a revolta em forma de gente, foi ser sei lá o quê e pareceu durar uma eternidade, até me libertar.

Acho que sou um pouco bicho do mato, ou uma pessoa do mundo…

Estou-me nas tintas para o que os outros pensam acerca de mim, o que me importa é ser eu própria e que os meus me amem tanto quanto os amo a eles, e como alguém me disse nos meus quarenta e quatro anos “ se a vida te der metade do que desejas aos outros, vais ser muito feliz” ou outra “ deixa de te esconder, escreve, porque és grande demais para não seres do mundo”, e sinceramente no alto do meu metro e sessenta e do peso cinquenta e cinco dias depois, ser acima da média e do que devia, sei que o que guardo é enorme, pelo menos para alguns. Só porque passo o que sinto, transgrido o normal e dou o que carrego.

Sou feliz,

Um pássaro livre que me albergo aqui

Um pássaro que voa se lhe apetecer mesmo que caia em derrocadas alguns momentos do tempo.

E isso acontece, porque o destino tem sempre variadíssimas estradas, que nos compete escolher no caminho que se sentirem mais seguros, e quando se voa, também se vai contra algumas farpas, árvores e fios de eletricidade.

Mas amo os meus, amo como se fosse a ultima gota do oceano, o ultimo morango de um morangueiro, o meu ultimo minuto de vida, e isso é o reflexo do que vale a pena ter chegado até aqui e ter tropeçado as vezes que tropecei, as quedas, as mordaças.

E eu fui uma pessoa que se viu entre estradas tão distintas e de escolhas…

E de facto tive uma das melhores escolhas da minha vida, entre o certo e o errado, o plano sem plano, o fim sem princípio ou o princípio sem fim. Não sei bem, passaram quase vinte anos e eu esqueci-me de tanta coisa, apaguei, não porque fosse menos importante, mas aquilo que a borracha da memoria apagou porque foi conveniente à forma que eu acabei por me tornar, via contorno, apesar de ser em papel vegetal, lápis e carvão ao destino que me estava preparado mesmo que não o viesse a escolher.

Sei que houve uma crise existencial, uns quebra nozes ou uma espécie de grito do Ipiranga como quem grita por liberdade, por ar que se respire sem poluição.

Não era mau, e muito menos muito mau, tinha sido o auge de uma adolescência turbulenta e a ascendência ao mundo adulto, mas que naquele segundo dos vinte e cinco anos procurava uma estrela que não estava no céu, um equilíbrio que não era o meu, um suspiro pós vida.

Como quando vives tudo e não chega, porque afinal o que queres é uma linha reta e essa está longe do que vives, entre a assolapada palpitação cardíaca e o filho que carregas nos braços que te revela que afinal não há amor nenhum como aquele, porque depois daquele quando se tem um quarto de século só outro igual aquele, não outro, porque não cabe mais, nem á tangente, porque não chega, todos são pequenos e por mais injusto que seja essa foi a minha realidade.

40 kilos de peso com uma simetria de vida muito maior que 400 mil quilómetros…

Caminhei tanto meu Deus, mais do que merecia numa idade rasa e miudinha, perdas fulcrais que fizeram de mim o que veio depois, e o que veio depois foi tão maior que me colocou numa caixinha de sabão, cheia de bolhas em desinfeção e me deixaram á deriva em busca de quem sou.

Com vinte e cinco anos de idade, idade profundamente estranha e em entranhas de subsistência dos pré trinta em que o mundo exige imenso de nós.

Foi quando me recordo da primeira queda, quando queres ser tão boa pessoa que tudo o que faças não chega, quando desistes de ti.

Mas ergui-me e percebi definitivamente que para ser eu bastava continua a fazer o meu bem maior, dar e estar, e isso era algo que aceitassem ou não seria o meu papel na terra nesta vida.

Pode ser curto, mas sempre achei que viveria muito menos, sempre achei que tinha aprendido tanto que chegava, que tinha tido um filho, plantado uma laranjeira e só me faltava o livro. O livro de trinta anos de letras.

O medo da perda é apenas a tradução do que perco dos meus filhos, nada mais.

Vou contar uma pequena história acerca da minha irmã do meio, com três anos mais do que eu e eu curiosamente hoje sou sete anos mais velha do que ela.

Eu não tenho muitas recordações da minha infância, o que me sobra é um triciclo de ferro que nem sei bem se existiu ou se é penumbra de uma outra vida qualquer, tenho o cheiro a bifes de peru do infantário da TAP que só vinte anos depois descobri que o cheiro era porque eram fritos em azeite e alho, tenho o cheiro a batatas fritas que o meu padrasto fazia e que provavelmente só me sobra o cheiro, porque ele à mesma vida que eu já não deve pertencer.

Cheiro a essência dos morangos com açúcar e Hortelã da casa da minha avó Gena, recordo os jogos ás escondidas entre trinta miúdos na rua em que um saltava sempre do primeiro andar e salvava toda a gente, enquanto a minha mãe gritava do terceiro andar o nome das filhas por ordem alfabética.

Estas são as minhas imagens, os meus retratos de infância, gravações das minhas memórias…

O resto pouco importa, a solidão, a ausência, as viagens, as minhas irmãs quando ainda eramos quatro e sobramos duas.

Eu e a Marta foi algo agridoce uma pedra no sapato que afinal foi o sapato que me calço diariamente e me guia o caminho por esta margem do rio.

Aos vinte e cinco anos descobri naquele doce-amargo a minha melhor amiga, que teve uma força desmedida em me pôr um lugar no mundo, em me juntar aos que amo e me deixar embalada e abraçada para poder partir em paz.

No dia que me despedi, no dia que perdeu os sentidos, que desligamos a máquina que a ligava à vida, trocamos energia, luz e amor, e fiz uma promessa que morreria parte de mim e parte dela viveria em mim para sempre.

E por fim, chega por hoje…

E que o mundo se torne um pouco melhor…

Eu não sei escrever, mas é uma terapia a quatro mãos.

Joana Sousa Freitas
Enviado por Joana Sousa Freitas em 07/05/2020
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