A SOMA DE TODOS OS DESAFETOS - RAFAEL NOITES

Agora que tudo passou, apesar de ainda existir dor, enxergo com clareza o que vi no início e que havia esquecido por conta da nebulosidade. Vi uma pessoa no fundo do poço, uma alma desesperada, uma estrada precisando de luz... As lágrimas sempre me comoviam, apesar das ameaças anteriormente também frequentes.

Vi o bem querendo vencer o mal... Vi uma quase falida faísca de esperança... Em seguida, um apagão. Aonde eu estava? Pior, com quem estava? O que havia feito? Imponentes exclamações diárias tornaram-se em minha rotina: "Desce!" "Sobe!" "Acorda!" "Dorme!" "Cala!" "Fala!" "Come!" "Fome!"

Só quero lembrar das borboletas, é melhor assim... Será melhor pra mim. Destruída por dentro ainda assim vou tentar fazer um filme bonito disso, poetas de verdade, fazem isso. Reunir os melhores momentos ainda que ínfimos, vai me dar a impressão de estar colando partes de mim mesma e me refugiar na ideia de que tudo não pode ter sido em vão.

Então eu me ilumino com a claridade e a nuances do céu, do calor acolhedor do sol, da rede na varanda, do cheiro da chuva na terra molhada, do barulho da cachoeira, das visitas diárias dos colibris, do cachorrinho teimoso e carente bem parecido com o seu dono. Das árvores se entrelaçando, dos peixes pescados, das muitas flores, incluindo principalmente as rosas e do ar mais puro que já respirei. Dos muros baixos e das casas sem eles. Da chuva forte no para-brisas, do véu da cascata, da ponte sobre o rio e dos moinhos.

Prefiro lembrar de você tentando ser bom, tentando dar o seu melhor, tentando ser pai e filho ao mesmo tempo. Você lutou contra você mesmo, e se vendo completamente em mim, me dilacerou... Tentou com o seu conceito de amor, tentou com covardia, tentou com os golpes, jeitos e gestos mais baixos que jamais pensei um dia vivenciar. Enfim, mas tentou...

E quanto à sua mãe eu ainda não a perdoei. Ela conseguiu ser mais monstruosa que você. Você era evidente, porém, ela foi iminente. Ela é o fim de uma vida que destroçou o nascimento de um sonho. Essa tarefa vou deixar pra Deus, que Ele a perdoe porque eu não consigo. Louca! Na sequidão dos seus ossos, quase cessou o germinar de uma semente.

O ar que lhe falta, soprará com muita abundância no meu futuro jardim e no seu fim eu recomeçarei. Já fiz isso antes e outra vez eu o farei. Vocês não me venceram! Oh, Deus! Ajuda-me a esquecer isso tudo! Deixe-me apenas lembrar das borboletas...