Ao homem inexistente

Sinto teu coração pulsar tão próximo ao meu em certas ocasiões. Quando olho pela janela e vejo, sob a neblina, a cidade se acendendo para o dia que está acordando com o sol... Sinto o cheiro suave do amanhecer.... Sinto a brisa refrescante que nos incentiva a viver mais este dia. E o vejo nestes dias, com seus olhos castanhos voltados para mim, seu sorriso comedido deixando a face menos dura, suas mãos grossas segurando o beiral da sacada enquanto a brisa lhe beija o rosto e a boca...

Vivo o resto do dia sem tua presença... E por vezes sinto forte tua ausência, o seu não existir. Mas sigo com o dia que me reclama aos afazeres cotidianos.

Sorrio à quem me sorri, retribuo sempre, amo retribuir. Trabalho com vontade, com alegria, mesmo com o mau humor batendo à porta querendo extravasar suas mágoas inúteis e doloridas. Almoço sem matar a fome que tenho, mastigo os verdes e amarelos nutritivos e sem graça, desejando mordiscar a picanha sangrenta e moldurada pela gordura chamuscada que vejo do outro lado.

Volto para casa, afago o cão que não se contenta somente com afagos e pula, morde, late e brinca comigo. Chamando-me a viver a sua alegria. Alegro-me com o cão! O cão me ama com sinceridade. Arrumo a casa, pego o livro que comecei a ler na outra semana. Mas não abro. Algo não me deixa abrir o livro. Respiro fundo e coloco uma música para ouvir, a me embalar o resto o dia. Escrevo palavras e as rasgo em seguida, são palavras bobas. De quem não vive de verdade, somente espera algo acontecer.

Com a chegada da noite, me aconchego no sofá, como os pães quentinhos que comprei na padaria da esquina. Meu companheiro me conta o seu dia, cheio de números e entraves com o chefe. Relaxamos sem nos dar a devida importância. Nem a minha é para ele, nem a dele é para mim. Conversamos amenidades, ele não me olha com fome, nem com admiração, nem com alegria. Ele não me olha. Eu não o olho também.

A noite se esvai com as propagandas comerciais dos intervalos das novelas. Os ponteiros dão as voltas necessárias ao seu árduo trabalho, me mostrando que é hora de sonhar.

Tomo um banho demorado, me olho no espelho e sorrio para mim mesma. Deito-me após um beijo de boa noite no companheiro que sorri meio bobo somente esperando que eu vá para poder voltar ao seu mundo.

A cama, o ventilador, o despertador, o pijaminha de seda que não cai bem no corpo, o creme para a pele... Como em todas as outras noites.

Boa noite, meu amor. Espero sonhar contigo novamente, sentir teu cheiro dessa vez, é possível? Bem, a brisa me espera bem cedo amanhã, durma com os anjos e sonhe comigo também...

Alessandra Vasconcelos
Enviado por Alessandra Vasconcelos em 22/10/2007
Reeditado em 23/07/2008
Código do texto: T704349