A ÚLTIMA CHAGA - Tragédia anunciada

Havia um site de jogatinas de cartas que eu frequentava desde 2012, que era uma distração nas noites solitárias em que éramos somente eu e meu filho. Apesar de usar um pseudônimo, com o passar do tempo me tornei uma jogadora em destaque, por conta de ser boa com as cartas. Fiz muitas "amizades", conquistas e era uma forma de me divertir e passar o meu tempo com uma criança dentro de casa. Afinal, quem é pai e mãe deve saber que depois que temos filhos, a TV não mais nos pertence. Hoje em dia temos os celulares, mas naquela época eu tinha apenas uma TV que ainda era de tubo.

Num determinado dia qualquer, uma pessoa entre várias que faziam isso, me pediu amizade. Como a maioria só queria jogar conversa fora e eu já estava em um relacionamento, eu passei a recusar muitos convites. Mas, essa pessoa foi insistente, chegou ao ponto de pedir para uma amiga nossa em comum, para falar comigo, disse que o conhecia, que era uma boa pessoa e que eu aceitasse o seu pedido.

De início achei estranho tanta insistência, mas visto o pedido dessa conhecida eu cedi. E foi normal no início e como eu esperava, perguntando se eu era comprometida e outras coisas. Justo a partir deste dia eu passei a sentir algo muito estranho, uma certa pressão no centro da minha testa, uma sensação que veio do nada e que me deixava muito desconfortável. Era como se ao mesmo tempo em que não me deixava raciocinar direito, também me fazia querer raciocinar demais. Resumindo, embaralhava por completo a minha mente.

Como Júnior era espírita, e já tinha sido da Umbanda e sua irmã ainda era, eu pedi a sua ajuda, pois eu sentia que era algo de natureza espiritual, mas que eu não entendia nada do assunto. A única coisa que me vinha à mente, era que Atan havia feito algo de ruim para mim, visto que o mesmo era do Candomblé, e não pela a religião em si, mas por ele mexer com coisas nada boas.

Lembro que Júnior chegou a levar o meu nome para o Centro Espírita e me trouxe duas mensagens de dois médiuns. Ele dizia que não ia mais na Umbanda, mas que era onde se sentia melhor e mais leve. E me ofereceu ajuda para me levar em algumas casas, inclusive, em uma onde sua irmã frequentava, mas eu achava o processo descrito por ele, no qual eu teria que passar, demorado demais. Sentia que meu caso era de urgência. Afinal, que paciente precisando de uma reanimação, fica na fila de uma triagem? Eu que trabalhei muitos anos em hospital público, entendo muito bem desse assunto.

Aconteceu que um dia foram ele, a irmã e a mãe na casa de uma amiga, que pediu o comparecimento dos mesmos para uma sessão espírita, ou que, uma entidade tinha algo para revelar para os mesmos. Depois eu pedi que ele entrasse em contato com essa tal amiga, para ver se poderia me ajudar com o que me perturbava, mas a resposta foi negativa da parte dela, segundo ele. Lembro de me chatear por ele ter perguntado se eu era a mulher da sua vida, e eu nem me lembro a resposta, visto que eu não precisava de entidade nenhuma para responder por mim, coisas que eram certas no meu coração. E se ele perguntou, ao meu ver, era porque ele não tinha a certeza necessária ou que julgava precisar.

Nessa época era carnaval e o pai de Júnior já estava doente, porém ainda trabalhando com muita dificuldade. Eu confesso que não gostava da forma como o Júnior ficava empolgado com o carnaval, inclusive, foi nesta data em que tivemos o nosso último e maravilhoso encontro. Foi uma noite maravilhosa na Lapa e eu amava beber vinho, tínhamos o nosso bar chamado arco-íris. Júnior tinha umas brincadeiras que me deixavam chateada, falava que eu ficava bêbada quando eu estava realmente só relaxada e feliz. Me chamava de barraqueira, porque uma noite eu brinquei com o taxista, e ele insistiu que eu briguei.

Essas pequenas más interpretações e impressões que Júnior ia fazendo a meu respeito, se acumulavam dentro do meu peito e no início eu evitava comentar, pois a última coisa que eu desejava na vida era magoar aquele homem. Apesar de achar Júnior o homem da minha vida, haviam certos aspectos do seu jeito de ser, que naquele momento ainda não tinham sido refletidos de forma negativa em nosso relacionamento, mas por serem contraditórios, despertavam sentimentos ambíguos em mim. Todos esses sentimentos estão relatados em minha escrivaninha sob o título "Nós três".

Ao passo que aceitei a amizade desse rapaz, chamado Rafael, fiquei presa à ele, devido à uma brincadeira que deu muito errada. Tínhamos trocado de conta, era um hábito comum entre os jogadores, mas naquela época o site havia feito uma mudança. Quando trocávamos de contas, posteriormente, mudávamos a senha da mesma. Neste período o site inovou, incluindo em todos os perfis uma chave de segurança permanente, onde com a mesma, independente da senha sendo trocada, a pessoa que tinha acesso à esta chave que ficava nos dados do jogador, poderia acessar a conta independente de ter ou não a senha.

Fiquei triste e desesperada visto que Rafael mudou o tom e começou mais que me assediar, passou a me obsidiar. Lembro de ter entrado em contato com o suporte do site, para ver a possibilidade da chave de segurança ser mudada, mas ainda levei uma bronca, dizendo que a política do site não se responsabilizava pelo fornecimento de senhas para terceiros por parte dos usuários. Considerava aquele site o meu segundo facebook e ele poderia deletá-lo, mudar a foto do meu perfil, meu nome e falar coisas no chat geral que eu jamais falaria. Ou seja, poderia arruinar todo um status que construí ao longo de 6 anos, literalmente com um único click.

Júnior como um bom capricorniano raiz, era muito trabalhador. A sua vida era bem representada como aquela cena da pessoa que enxergava uma floresta, mas não conseguia ver a árvore, que por sinal, era eu. Porém, começou a se ver forçado a sair da sua zona de conforto de leituras, filmes e séries, quando teve que se mudar para ir morar com o seu pai. Gostava de artes, museus e eu via a forma como ele ficava encantado com a beleza nua daquelas mulheres nas pinturas. Belezas e atributos que eu apesar de bonita, não as tinha.

Também achava estranho o fato de sendo espírita e posteriormente fazer curso para se tornar médium, Júnior apreciar uma festa tão carnal, nada mais, nada menos que o carnaval. Coisas que eu não sendo espírita, me sentia muito incomodada. Ele tinha um trabalho extra que posteriormente, virou o negócio principal da família, que além de ficar perto da sua casa também ficava perto de uma boate, o renomado bar chamado Bukowski. Eu sentia que Júnior queria fazer parte daquele mundo, mas sua baixa autoestima não permitia.

Escreveu muitas cartas e muitos contos aqui neste recanto que indicavam uma alta sensibilidade com os sentimentos, uma pessoa de feeling muito apurado e que procurava um amor. Uma pessoa que entendia bem de pré-julgamentos e de rejeição apenas pela aparência e não pela a essência do ser. Conhecia bem o mundo das mulheres, mas pouco compreendia delas. Segundo ele, teve apenas duas namoradas em toda a sua vida, e levou três anos para superar um relacionamento de seis meses. Sim, ele admitia ser desproporcional o tempo de sofrimento com o tempo do relacionamento.

Eu pensava que estava sendo um oásis no deserto de Júnior, tempo em que não fazia ideia de que o mesmo não precisava de um oásis por não se considerar em um deserto. Apesar dele dizer que sem mim ele sabia para onde voltaria e que não haveria alegria alguma neste lugar. Era muito romântico nos textos e de uma maneira forçada na vida real. Hoje eu acho que seus textos eram semi psicografados, muito profundos para alguém que levava uma vida tão rasa.

Júnior sempre chegava atrasado aos encontros, mas quando estávamos juntos era como se uma magia acontecesse. Eu não estava apenas apaixonada, havia uma profunda conexão de almas quando nos tocávamos, mas para essa magia acontecer, precisávamos da proximidade física ou mental. Não sei qual das duas se desconectou primeiro, mas hoje não tenho dúvidas que a segunda, nunca existiu por parte dele.

Ficava chateada com os esquecimentos frequentes de Júnior, sobre assuntos meus que eu conversava e depois que eu voltava a tocar no assunto, ele não lembrava. Eu comecei a sentir que ele não dava tanta importância de fato para a minha vida e passou a dar, devido às cobranças que passei a fazer. Fator este que achava errado, mas por tantos pedidos de desculpas dele, eu relevava. Não é que Júnior tinha tantos problemas, é que o meu mundo de fato não era do seu interesse.

Lembro que tínhamos por hábito de nos chamarmos carinhosamente de "momô", e ao estar um dia em sua casa, o chamei assim quando fui secamente repreendida para que não o chamasse daquela maneira na frente da sua mãe que poderia sentir ciúmes. Na hora passou batido, eu aceitei, mas depois eu pensei que tipo de mãe sente ciúmes com a felicidade do seu filho?

E também, principalmente com o fato que ocorreu na casa dele com a sua irmã e que me deixou desconfortável na passagem do ano. Eu pensava porque ele simplesmente não falou com ela que eu era a namorada dele, gostando ela ou não e que ele tinha contribuição financeiras com as despesas da casa tanto quanto todos ali? A verdade é que a sua irmã que apelidei de Rapunzel também gostava de viver na sua torre alta e isolada, e que da vida de verdade pouco tinha experiência. Uma feminaze, que nunca tinha namorado chegando aos seus trinta anos. Se sentia melhor e superior as outras pessoas por estar fazendo mestrado em uma universidade pública. E Júnior, apesar de ser um trabalhador, sentia-se frustrado por não finalizar a faculdade e tinha uma certa relação de adoração pela a irmã. Ela era ou tinha tudo o que ele queria ser, mas não havia alcançado.

Percebendo isso ao longo do tempo, eu já havia colocado em meu coração que não tinha mais saúde e nem necessidade e idade pra ficar provando pra ninguém a pessoa que eu era. Me entristece o fato de que até hoje nem o próprio Júnior tenha percebido isso. Uma mulher forte, guerreira, carinhosa, mas terrivelmente cansada. Cansada dos desgostos, cansada de falsos amigos, de parentes fofoqueiros, de homens abusadores, de sempre ajudar e nunca ser ajudada e principalmente dos pré-julgamentos alheios que ele tanto se dizia entendido em seus escritos.

Seu pai adoeceu, e vindo a falecer eu liguei para o celular de Júnior e sua irmã quem atendeu. Se quer me deu boa tarde e já passou o telefone para ele. Conversei um pouco com ele e a atitude da sua irmã, foi decisiva para que eu não comparecesse ao enterro do seu pai. Aqui dentro deste contexto repleto de natureza espiritual e também carnal, colidiu passado, presente e futuro. Todos destruídos em uma tragédia anunciada pela a aparição do abusador de grau severo...

(Continua...)