Cintra

Era engraçado vê-lo assim tão perto e, ao mesmo tempo, tão distante.

O sorriso bobo, maroto até, exprimia uma juventude quase infantil que, há muito, eu já havia desistido de procurar em alguém. Numa hora, um garotinho travesso pulando sobre poças e, no instante seguinte, um homem concentrado, sutilmente disfarçando a preocupação com os estudos.

A forma como respirava débil e cansado entre uma palavra e outra, o modo de segurar a caneta, a linha fina em sua boca triste de palhaço, sempre curvada para baixo e, é claro, tinha aqueles dedos esguios, brancos e cadavéricos que pra coçavam a barba de forma displicente, pra tamborilavam sem som por entre as folhas do caderno.

Eu adorava aquelas mãos.

Seriam as roupas largas? A maldita camisa xadrez que mais parecia uma couraça pendendo sobre os ombros de alabastro, tal qual escudo que o fazia encarar o dia, enfrentar os inimigos, ser ele mesmo e sem mistérios? Não!

Não eram as vestes, nem os inúmeros piercings, a pose grunge de um cara que literalmente não ligava para o mundos queria que os outros fossem para o inferno, não isso!

Ainda havia um coração latente ali, mesmo que silenciado pela casca fria que o encobria. Eu podia sentir quando aqueles braços circulavam o meu corpo em um abraço apertado, não… sufocante. Sabia perfeitamente que aquele galopar surdo, quase imperceptível, significava mais que a cicatriz de batalha num peito de soldado ferido que fora ultrapassado por uma lâmina de prata.

Aquele era o apelo de um órgão latente por deixar a escuridão e os anseios de um menino que ainda não sabia o que fazer.

Na época, queria descobri-lo e desvendar cada milímetro da alma, cérebro e essência de garoto perdido que sustentava, uma necessidade intensa que corroía e atraia.

Desejava protegê-lo do mundo, porém, ansiava ainda mais por salvá-lo de si mesmo, o meu pequeno e frágil príncipe de gelo.

Veja só, como a vida é: dois estranhos desencaminhados andando sozinhos numa encruzilhada que parecia eterna, destinados a se encontrar por puro acaso e tirar a escuridão um do outro. E quem foi que disse que entre duas almas ocas não poderia haver preenchimento ou semelhança?

Olhando para o passado, hoje, encontrei essa carta, rasgada e amassada, mas serviu para que a lembrança me trouxesse um sentimento de gratidão, à você que veio das trevas, por ter me ensinado a conviver com as minhas, por ter me deixado entrar, por ter me feito crer na humanidade de novo, naquela época…

E porque no seu abraço eu encontrava tão facilmente a amizade verdadeira.

Ladra de Tinta Seca
Enviado por Ladra de Tinta Seca em 21/01/2023
Reeditado em 21/01/2023
Código do texto: T7700668
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