Vocação - A Saga de Sivirinin


                                                                 Compadre Lemos

Sivirinin nasceu nun lugarejo chamado Solidão, Sertão do Pajeú, Pernambuco. Nasceu chorando alto, como quem já chega com fome.

“Meu Deus, mais uma boca!”, pensou Terto, o pai, vaqueiro da Fazenda Tiara, do Doutor Justino Fontes.

Donana, a mãe, perguntou a Sá Rosa Parteira:

- É home, cumade? Será qui iscapa?

- Na fé de Deus!

Sivirinin escapou. Cresceu junto com nove irmãos, enfrentando secas e enchentes, aprendendo a plantar e a colher o feijão pouco, a macaxeira de finas raízes, esparso alimento. Cresceu como cresce a maioria absoluta das crianças do Sertão: escapou!

Aos quatro anos, perdeu a vista esquerda, vítima de conjuntivite ou “dordói”, como se diz no Sertão. Vendo com um olho só, via diferente dos outros. Pressentia beleza em tudo que olhava, desde o vermelho das rosinhas-do-brejo, ao verde-milagre da caatinga rediviva, nos invernos bons que Deus mandava.

E ouvia muito!... Amava o música suave do sabiá que o pai mantinha numa gaiola de taquara, o aboio dos vaqueiros na caatinga distante. E ouvia, vez em quando, os cantadores e repentistas da feira, entoando versos e vendendo Folhetos de Cordel. Era isso!... Era isso que ele queria ser, um dia! Aos sete anos, na feira de Solidão, descobriu-se poeta.

Aos dez anos, freqüentou, pela primeira vez, uma escola. Dona Marta, esposa do Doutor Fontes, abriu uma sala, onde alfabetizava crianças e adultos, distribuindo, todo dia, os “santinhos” com a foto do marido, agora candidato a Prefeito.

E Sivirinin aprendeu rápido. Foi o primeiro a ser alfabetizado. Precisava saber ler e escrever, para realizar seu sonho. Um dia, querendo Deus!...

Mas parece que Deus não queria. Ou, pelo menos, não queria desse jeito. O povo não votou no Doutor Fontes, ele vendeu a fazenda e sumiu, levando a família. Os novos proprietários chegaram, trazendo seu próprio pessoal. Vieram máquinas, ferramentas e adubos. E tudo se transformou nun imenso canavial. Era a Usina!

Terto, desgostoso, arribou pra capital, levando Donana e os meninos, em busca de emprego. No Recife, não achou o trabalho tão sonhado. Andou mais pra frente, com destino a São Paulo.

De passagem pelo Rio de Janeiro, o Destino achou a hora certa de agir. E Sivirinin, com apenas onze anos, perdeu-se do grupo. O ônibus partiu, levando seu povo e ele ficou, desnorteado e sozinho, num mundo irreal e desconhecido. Chamou, chorou e acabou dormindo com fome, num banco de praça. Acordou de madrugada, com uma voz amiga, chamando:

- Acorda, meu filho. Quer um sanduíche?

Severinin aceitou, que a fome é negra. A senhora elegante que o acordara, acompanhada de dois jovens bem vestidos, pediu que ele lhes contasse sua história. De onde ele viera? Onde estavam seus pais?

E ele contou tudo, desde o momento em que saíra de casa, até achar-se naquele banco, perdido e sem ninguém.
Quando ele terminou, a senhora disse:

-Nós três somos Assistentes Sociais. Sempre andamos por aqui, procurando pessoas desamparadas, para prestar ajuda. Nós vamos levar você a uma Instituição onde lhe serão oferecidos casa, comida, escola e trabalho. Você vem conosco?

Sivirinin foi, não tinha outra opção. No "Educandário Nosso Lar" foi acolhido. Passou a morar, estudar e trabalhar na própria Instituição. Acostumou-se. Era feliz.

Na Escola, destacou-se pela inteligência e pela dedicação. “Pagava” os estudos e a estadia com seu trabalho, escalado para ajudar o jardineiro, na conservação do pátio.

Foi assim que conheceu o Mestre Ambrósio. Nordestinos, os dois, a simpatia foi imediata e recíproca. Com o velho funcionário, Sivirinin, agora Severino, aprendeu a cuidar do jardim, a podar os arbustos, a recolher e ensacar o lixo e as folhas caídas. Um dia, perguntou:

- Mestre Ambrósio, por que as pessoa chama o senhor de Mestre?

O velho sorriu e devolveu-lhe outra pergunta:

- Tu sabe ler, nun sabe, esse minino?

- Um pouco eu sei, sim senhor.

- Então, eu vou te mostrar uma coisa e tu vai entender tudinho. Vem comigo.

E Severino descobriu que Mestre Ambrósio era um Cordelista, que já tinha escrito centenas de Folhetos de Cordel e que os vendia na Feira de São Cristóvão, aos domingos. Um dia, pediu:

- Mestre, tu é o que eu quero ser, na vida. Me ensina a escrever Folhetos!

O velho poeta, entregou-lhe um lápis e um caderno, dizendo:
-Ensinar eu não posso. Poesia vem de dentro. Mas tu pensa numa história bonita e escreve, em versos. Quando tiver pronta, tu me mostra.

E Severino começou a escrever a história de um vaqueiro chamado Terto, que arribou com a família para o Sul, onde um filho tornou-se Cordelista e amparou a todos. Escreveu a sua própria história!

Quando chegou à parte em que ele tinha sido recolhido à Instituição, perguntou:

- Mestre, por que as pessoas me recolheram, me deram casa, escola, comida e trabalho? A quem devo agradecer, por tudo isso?

- A ninguém, meu filho. Tudo o que você recebeu está na Lei. É direito seu!

- E que lei é essa, que eu nunca ouvi falar?

- É o Estatuto da Criança e do Adolescente, Severino. Uma lei muito justa e sábia. Se ainda existem crianças e jovens com fome, sem abrigo e sem escola, é porque ainda tem gente que desconhece ou que não respeita essa lei.

- Eita lei arretada de boa!... Então, é por causa dela que eu ganhei tudo isso?... Home, um cabra que fez uma lei dessa deve de tá é lá no céu, onde a felicidade nun acaba é nunca! Benzô Deus!..

  ***
Hoje, tantos anos passados, quem vai à Feira de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, pode ver a barraca do Mestre Severino Pajeú, que escreve e vende cordéis e canta versos lindos para o povo.

Em sua vasta e inspirada obra, o tema preferido é a luta contra a injustiça social, contra o abandono, a violência, os vícios e os perigos que assolam os filhos pobres de um país tão rico!

Apesar de adulto, casado e pai de filhos, Mestre Severino Pajeú ainda é o mesmo Sivirinin de Terto, um pequeno nordestino que foi salvo por pessoas que conheciam, respeitavam e praticavam o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Deus seja louvado!...