Um ano em Pereirópolis III - "O Mercado Público"

Vendo essas infindáveis manchetes sobre a brincadeira (para não dizer palhaçada) do prende-e-solta do tal banqueiro, que é considerado o maior corruptor da história do Brasil, lembrei de uma história que o Seu Horácio contou, numa das primeiras cartas que ele me mandou. Ah, sim. Ele me escrevia religiosamente a cada duas semanas. Exceto, é claro, quando os Correios não estavam em greve.

Há muitos anos, um empreendedor bolicheiro de Pereirópolis – Malaquias – teve um insight digno de ser contado. Vendia apenas três tipos de produtos: fumo, cachaça e salame. Para sua enorme vantagem, dos três itens, apenas o fumo era adquirido de um fornecedor; a cachaça e o salame vinham da chácara e do alambique da família. Quando teve de ir à Porto Alegre e viu pela primeira vez o Mercado Público, voltou para a Vila da Pereira cheio de idéias.

Seus vizinhos, contumazes consumidores dos três produtos da venda do Malaquias, todos tinham o nome anotado na caderneta. A tática do bolicheiro foi bastante simples: parou de cobrar. Chegou o final do mês, e o dono da venda simplesmente deixou a folhinha virar. E passou um, passaram dois, passaram seis meses, passaram onze meses e nada de Malaquias cobrar as dívidas da caderneta. Entretanto, estavam lá todos os tragos de cana, todos os pitos, todas as pernas de salame, a data, alguns até a hora em que foram consumidos e os nomes dos clientes. Ao final de um ano, o homem fechou a porta do bolicho e passou de casa em casa entregando as contas, anotadas com sua caligrafia impecável de quem já tinha estudado até o ginasial. Como se pode imaginar, o valor era exorbitante. Milhares de milhões de cruzeiros foram consumidos pelos fregueses do Malaquias. E para todos, sem exceção, fez a mesma proposta:

“Aceito a tua casa no negócio”.

“Mas a casa vale mais do que o que eu devo”, respondiam por uma boca só.

“Ah, sim. Mas eu pago a diferença”, ele respondia.

Assim, com um investimento muitas vezes menor do que seria necessário, fechava os negócios feito um cigano. Como nenhuma das casas havia sido averbada no cartório de imóveis, pagou apenas pelo que valiam os terrenos. “É o que está no papel” ele dizia, quando adicionava mais uma escritura à sua coleção. Foi assim que em poucas semanas o bolicheiro Malaquias tornou-se proprietário de toda uma quadra. E naquele ano, mandou construir um mercado enorme, o maior de todas as vilas da região – maior até que o Bolichão do Ataliba, na Vila das Paraguaias, que ainda não se chamava Bairro Guarany. E o prédio ficou tão bonito, tão grande, que a única desvantagem em relação ao Mercado Público da capital era que em vez do Guaíba, ficava nas imediações do Rio Macaco.

Tá. Mas até aí você, assim como eu, vai querer saber de onde saiu o dinheiro para esse empreendimento.

Bom. Essa história é bem mais esquisita, mas juro que foi exatamente assim que o Seu Horácio me contou.

Dizem que a chácara do Malaquias era assombrada por um fantasma, a viúva de um farroupilha que viveu naquelas terras muito antes dos tropeiros fundarem a vila. Como todo mundo sabe, onde há assombração há enterro de dinheiro. E como todo mundo sabe também, e também sabia disso o Malaquias, quem encontra o enterro de dinheiro não usufrui dele. Nessa mesma época vivia lá pela venda, sempre duro de trago, um rapazinho negro de uns quinze anos, chamado Genuíno. Assim como os outros fregueses, Genuíno não tinha dinheiro para pagar a conta de um ano de cachaça. Malaquias não pensou duas vezes: cobrou a dívida em serviço. Segundo dizem, entregou ao rapaz uma enxada, com a desculpa de que ia plantar mandioca em toda a sua propriedade. Ninguém sabe certo se o Genuíno encontrou ou não o dinheiro enterrado. Mas a verdade é que uns dias depois de começar o serviço, o pobrezinho foi picado por uma jararaca, não se ouviu mais falar do fantasma da viúva do farroupilha, e os alicerces do suntuoso Mercado Público de Pereirópolis começaram a ser construídos.

Os antigos vizinhos do bolicho foram todos morar na Vila das Paraguaias, onde os terrenos eram mais baratos. E o Malaquias? Dizem que morreu por causa da emoção quando inauguraram seu empreendimento.

O Mercado, esse sim, está lá até hoje.