CURUPIRA

Boquinha da noite depois da ceia.

Cadeiras de balanço na varanda.

Vizinhos em animada prosa relembram casos (nem sempre verídicos), onde o heroísmo de um alimenta a admiração do outro.

- eu sempre gostei de caçar.

Não sei dizer se por conta da origem nobre portuguesa ou por causa dos tupiniquins herdada dos ancestrais...

O fato é que desde menino saía com meu pai e os amigos dele, para caçar.

Lá em casa nunca faltou cachorro bom. Teve tempo em que havia mais de doze, eram perdigueiros, galgos para caçar veado, beagle, basset e um bando de vira lata.

Tinha até um fila, chamado Brutus, que diziam já havia pegado onça no pantanal...

Certa vez, eu devia ter 15 ou 16 anos, fomos caçar em Paulo Afonso, nos confins da Bahia.

Saímos boquinha da noite de quinta-feira com volta marcada para o domingo.

Foi quando inaugurei a Smith West que meu tio trouxe dos Estados Unidos...

Nunca mais esqueci, matar e comer na mata são a melhor coisa do mundo...

Quando ainda estávamos montando o acampamento, apareceu um veado mateiro, daqueles da galhada bem formada alto e gordo.

Quando vi o bicho, peguei a espingarda, botei mais balas no bolso e saí atrás dele.

O veadão tinha sentido o cheiro de gente e estava assustado, mas eu fui me esgueirando por dentro do mato, até que peguei posição e tiiibuuuummm!!!,

A bala pegou na pá...

Foi bater e o bicho arriar...

Todo mundo veio ver, meu pai sangrou prá não estragar a carne, desencourou a cabeça, salgou e para não apodrecer pendurou num galho para secar.

Da ponta da venta até o fim da galha, dava mais de metro...

- é verdade...

- Até ano passado eu tinha a caveira enfeitando a sala, não sei que fim levou. Nesse mesmo dia, seu Antonio, amigo do meu pai matou um canastra com metro e meio do focinho ao rabo...

- é verdade...

- a única coisa triste foi que uma salamanta-boi mordeu mãezinha, uma perdigueira grande que nunca deu menos de oito crias em cada barriga.

Meu pai foi quem matou a bicha, mais de 3 metros.

O couro dela ficou espichado na parede por muito tempo...

Meu pai atirava bem como diacho, nem precisava fazer pontaria.

Era pistola, espingarda, mauser, era passar o dedo e o estrago tava feito, nunca vi ninguém atirar como ele...

- é verdade...

- Chiquinho meu filho, vá buscar um copo d’água pra mim e pro compadre...

- bem lembrado compadre, bem lembrado...

- voltamos com os bisacos cheiros. Era tatu, paca, cutia, nhambu, veado, vagem de jucá e raspa de juá prá fazer remédio.

Por sinal quando cheguei perto do juazeiro, levantou uma nuvem de arribaçã.

Com quatro tiros de espingarda soca-soca, matamos prá mais de cem.

Parece mentira mais foi, o céu quase desapareceu de tanta pomba.

Comemos carne de caça durante muito tempo e sempre que o pessoal se reunia lá em casa, se falava nessa caçada.

Nesse tempo não havia freezer e para conservar tinha que ser no sal.

Para se beber qualquer coisa mais fria que água da quartinha, tinha que comprar a barra de gelo que vinha num saco de estopa com serragem e era colocada numa geladeira.

Eram tempos trabalhosos mas a qualidade das comidas era melhor.

Para fazer um cuscuz prá comer de manhã, na véspera, tinha que dar um cozimento rápido nas espigas, deixar escorrendo, ralar, temperar e colocar com um pano na boca da chaleira para cozinhar no vapor.

Também meu compadre, se sentia o cheiro no início da rua.

E aí, era só passar manteiga ou misturar com leite, ou com guisado de galinha ou bode ou queijo frito, o diacho e comer até ficar arfando...

- é verdade...

- mas como eu ia lhe dizendo, para não ser mordido por cobra, eu comprei um par de botas de cano alto e mandei fazer uma calça com o couro do veado que durou uns vinte anos.

Olhe meu compadre, se não fosse ao senhor eu nem contava esse caso para não ser chamado de mentiroso, uma vez eu caçando em Tapacurá, uma cascavel deu o bote e ficou presa no couro.

A bicha se enrolou nas minhas pernas aí eu peguei meu rabo-de-galo e cortei-lhe a cabeça.

Tive que usar sovela para desencravar os dentes dela.

- é verdade...

- agora teve um caso que aconteceu comigo que me fez deixar de caçar. Até hoje fico arrepiado, olhe só.

- nossa mãe...

- foi numa semana santa, o banco fechou na quarta e só iria abrir na segunda seguinte.

Fomos caçar na mata do Rio Formoso, armamos o acampamento e danou-se a chover...

Choveu forte a noite toda...

Dia seguinte, quinta-feira, não caçamos nem um rouxinol...

Só se ouvia o bem-te-vi...

De noite, sentimos falta de dois cachorros.

Sebastião foi fazer o fogo que não pegou de jeito nenhum...

Gastou-se o querosene todo...

Peguei o fogareiro de gás, nada. O gás tinha escapado...

Comemos carne de lata com farinha molhada pela chuva que entrou no saco plástico não se sabe como.

Pedi a Sales um gole da aguardente que tínhamos comprado na vinda. Bateu-se tudo, a garrafa tinha sumido.

Deitamos para dormir, mas amanheceu e não pregamos olho, pois durante a noite toda foi uma zoada danada, miado de gato do mato, grito de tetéu, até esturro de onça nós ouvimos...

- vixe...

- na sexta-feira da paixão, bem cedinho, sem café nem nada, deixei o acampamento com Rex, meu melhor perdigueiro, carreguei a espingarda até a boca, botei no ombro a cartucheira e o cantil e saí na direção oeste.

Não tinha como errar, era o sol, eu e a caça.

O que aparecesse levava bala.

Aí eu vi o mato bulindo, soltei a guia de Rex e fui no rastro dele, de repente, Rex voltou gritando e passou por mim feito uma bala, eu pensei é onça, três passos na frente futuquei a touceira...

Meu compadre, o senhor sabe que eu não gosto de mentiras que eu sou capaz de brigar com o cabra se descobrir que ele é mentiroso...

- oxente compadre, eu acredito no senhor...

- pois bem, apareceu na minha frente, um caboclo deste tamanhinho, cabeça raspada, orelha de morcego, com os pés virados prá trás, montado num queixada...

Fiz pontaria e o cabra disse.

- se puxar o gatilho, a espingarda vai explodir na sua mão. Vá embora e nunca mais venha caçar na semana santa, papai do céu não gosta...

- aí eu perguntei pro cabra, quem é você?

- sou o curupira...

Dona Cotinha gritou do outro lado da rua,

- Basílio, já está tarde, vamos dormir...

- boa noite compadre, amanhã eu volto.

- boa noite compadre, durma bem.

Alberto Vasconcelos
Enviado por Alberto Vasconcelos em 30/07/2008
Reeditado em 09/04/2013
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