O faxineiro autodidata

Prólogo:

A realidade, que imaginamos positiva, nem sempre é verdadeira. Baseia-se em ficção e, com base em imaginação, profícua ou não, quase tudo o que escrevemos, por uma razão bastante significativa, pode ser distorcido aos bel-prazeres dos leitores cada vez mais ávidos por maquinações literárias bem urdidas.

Desse modo, resolvi escrever usando um estilo próprio, isto é, um misto de ficção e realidade não para confundir, mas, sobretudo para inaugurar minha musicada estação de trabalho com 4 Gb de memora RAM e disco rígido de 500 Gb.

Em conjunto com os dois outros computadores, sendo um para diversão e o outro para estudos, em uma intranet, todos com a mesma configuração e usando o Windows Vista Ultimate, posso me atirar com entusiasmo, pelo mundo afora, sem sair de meu escritório.

Essas máquinas exageradas, recém-montadas com excesso de trabalho e renúncia sacrificante aos lazeres mundanos, são a representação de uma conquista prazerosa e vivificante, prova maior de que sou, de fato, um excêntrico que lampeja ao sol sem brilho das lembranças da infância inglória.

VIVÊNCIA NO RIO DE JANEIRO/RJ

Trabalhei dez longos anos no Rio de Janeiro. Naquela cidade maravilhosa fui indicado para ser o chefe responsável pelo bom desempenho da seção de expediente de uma Divisão de Pesquisas. Esse nome pomposo: “chefe da seção de expediente” em verdade era apenas um eufemismo para denominar o faxineiro chefe menos graduado da Divisão que alocava funcionários civis e militares, todos com curso superior, pós-graduação, mestrado e alguns até com doutorado no exterior.

Sempre fui um visionário que mantinha os pés no chão e a cabeça no lugar, mas para ficar trabalhando naquele local precisaria dar continuidade aos meus estudos. Sem poder pagar uma faculdade restava-me tentar fazer a UERJ ou a UFRJ, sendo aquela estadual e esta federal.

Fiz opção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e, após quatro tentativas frustradas, aos 39 anos de idade, consegui classificar-me para o curso de Ciências Jurídicas e Sociais (Direito). Ao ser aprovado para aquela conceituada Universidade ganhei presentes diversos: canetas, lápis, cadernos, máquina de calcular etc., e recebi manifestações sinceras de congratulações dos meus pares, superiores e subordinados.

Fui agraciado com uma festa digna de louvores pelos meus familiares, mas eu não estava completamente feliz porque outros colegas e companheiros de estudos, também sacrificados e batalhadores, não me acompanhariam, por terem sido reprovados, na empreitada estudantil.

Sempre fui o primeiro a chegar e o último a sair do expediente onde trabalhava, no Bairro do Leme. Saia correndo e pegava o ônibus 472 para desembarcar na Avenida Presidente Vargas e depois corria até a Rua Moncovo Filho, perpendicular ao Parque de Santana, onde estudava à noite, quase sempre faminto, até as 23 horas.

Quando eu chegava em casa todos (minha notável família) já estavam dormindo (Fátima, Fabianne, Júnior e Walter). Bebia, às pressas, um copo de leite morno e dava continuidade aos estudos fazendo revisão das aulas ministradas, até 1 ou 2 horas da manhã, dependendo da vontade e predisposição de Morfeu (deus grego dos sonhos).

A VITÓRIA CONSOLIDADA E FRUSTRADA

Ao me formar aos 44 anos e após 5 anos de muitas horas de estudo, sonolento, nas madrugadas, eu entendia que poderia ser visto como igual na Divisão de Pesquisas onde só trabalhavam intelectuais. Não. Isso em absoluto aconteceu. Nada mudou e tampouco mudaria. Mesmo graduado pela UFRJ continuei sendo o chefe dos faxineiros e ai de mim se esquecesse de mandar abastecer os banheiros com papéis-toalhas, sabonetes, rolos de papéis higiênicos e pastilhas desodorantes.

Digo ai de mim porque minha avaliação e/ou desempenho funcional sempre foi, durante todo o tempo de serviço ativo na caserna, com base nos meus pequenos deslizes. Nunca fui avaliado pelo que era capaz de executar. Onde eu exercia minhas funções, as mesas de trabalho dos funcionários, todos de níveis superiores, deveriam estar sempre limpas, brilhando e impecáveis. Essa era a minha especial tarefa.

UMA CONVERSA ENTRE PSEUDOS ERUDITOS

Certa ocasião, ao examinar uma das salas de um dos psicólogos para fiscalizar a limpeza efetuada por um dos meus diligentes subordinados, ouvi e vi o "erudito" superior, chefe de todos os demais, dizer ao outro não menos notável professor e psicólogo: - “... No momento o testando oferece condições [sine qua non] à contratação que ansiosamente pleiteia...”. Eu ouvira “condições [sine qua non]”? Ouvira sim!

Não fiquei quieto! Respeitoso, talvez prudente e cauteloso em demasia, perguntei ao eminente oficial o que eu já sabia de cor e salteado, pois sempre fui e serei um autodidata recalcitrante e consciencioso:

- Senhor, qual o significado dessa expressão latina [sine qua non]?

– Não estou certo, mas acho que significa favorável. Por quê?

– O senhor me permitiria uma observação? Há um lapso de concordância na frase “condições [sine qua non]”. Ou o senhor retira o “s” de “condições” ou pluraliza a expressão latina [sine qua non]. Quanto ao significado o senhor está certo. [Sine qua non] significa: sem a qual não. Expressão que indica uma cláusula ou condição sem a qual não se fará certa coisa.

– Existe o plural de [sine qua non]? Nunca aprendi isso! Nunca ouvi falar sobre isso! Qual é? Como você sabe disso?

Sem deixar o ufanismo subir à cabeça e remoendo cogitações excelsas e sofridas antes de ser aprovado no vestibular da UFRJ respondi ao bombardeio de perguntas com a voz embargada de emoção e certeza:

– O plural de [sine qua non] ou “condicio sine qua non” é [sine quibus non]. Para sua frase ficar correta o senhor deveria dizer ou escrever: condições [sine quibus non] ou condição [sine qua non]. – Eufórico o professor mais graduado da Divisão de Pesquisas disse:

– Bravo! Aposto que você é o único nesta seção que sabe deste detalhe que fará a grande diferença em meu parecer (senti um certo desprezo com orgulho nestas palavras do chefe). Você aceitaria uma promoção funcional e cumulativa com as que já lhe dei aqui na Divisão?

Eu poderia dizer não? Isso seria prudente? Naquela época eu não era tão denodado a esse ponto. Claro que aceitei a tarefa fosse ela qual fosse. Contendo o riso, pensei com meus botões: "saberia o conspícuo superior que a palavra "Bravo" é de origem italiana"? Isso agora é irrelevante. É de somenos importância divagação dessa monta.

Desse modo fui promovido para trabalhar, silente, nos bastidores, sem deixar de ser o faxineiro chefe, olhado por alguns com desdém, a revisor de todos os relatórios, ofícios e pareceres que eram emitidos pelos pedagogos, psicólogos e demais professores da Divisão de Pesquisas do Estabelecimento de Ensino.

Até hoje essa Escola de renome ministra cursos de Inglês, Francês, Italiano, Russo, Alemão, Espanhol e Português para os estrangeiros que vêm para o Brasil com propósitos diversos, mormente nos espionar.