A mulher que dormia na hora do 'vamuvê'

Fatinha era o apelido dela. Pequena, morena, redonda, tinha a sua graça. Casada com Tíbi, o seu marido João Tibúrcio. Tinham quatro filhos, três deles , na contagem do marido, feitos dormindo, porque na expressão deles, na hora do ‘ vamuvê’, ela sentia um sono que fazia o marido acabar a noite sozinho.

_Ara, Fatinha, aquilo não teve graça, não! Ocê dormiu de novo!_ dizia ele pra ela no outro dia. Já haviam tentado de tudo. Teve uma vez que ele resolveu tirar o leite das vacas à meia noite e alimentar as galinhas em seguida pra ver se então, tentando de manhã, ela não dormia, mas também não deu certo. Ela, por sua vez, bem que se esforçava. Ficava olhando a sombra dos latões de leite na parede, formadas com a luz do lampeão que resolveram deixar aceso; despertava do seu torpor com o menino no outro quarto pedindo pra apagar a luz, pois ele não conseguia dormir com a novidade do clarão tardio nas telhas do seu quarto, e no outro dia ele tinha escola.

_ Não vê o Isaltino, Fatinha, sempre dormindo pelos cantos? Foi feito dormindo. A Tica, que dorme até tomando banho? Vê se pode! _Dizia o pai das crianças, desanimado. O único que puxara a ele era o Tito, mas esse Deus Nosso Senhor havia levado muito cedo dessa vida. Quatro filhos, três com eles e um no céu, de modo que o homem ficava sozinho nas contas de todas as noites. Se ele narrava uma história, aí sim, ela ficava acordada; se ela consertava alguma roupinha das crianças, se chegava visita de um sítio vizinho, tudo era animado pra ela. E não fique o leitor achando que ela não gostava do marido ou de se deitar com ele. Não,senhor, ela se preparava, punha-se bonita pro seu homem, que ficava animado e por isso nunca duvidara do amor da mulher por ele. E ele, coitado, no meio do milharal, tratando dos porcos ou do cavalo, roçando o mato ou molhando as verduras da horta, sempre pensando num jeito de resolver a equação. Ficavam seis dias sem se tocarem, faziam simpatia que a comadre ensinava e nada. Ela pensava na lida do dia vindouro pra ver se a preocupação a mantinha desperta, mas tudo experimentavam em vão.

Resolveram então que deviam falar com Dona Marcília, parteira antiga e também conselheira dos casais queixosos de causas várias. Na volta passaram no empório do vilarejo e foram pra casa com as compras recomendadas, reconfortados, pois não perdiam as esperanças. Quando iam chegando, não é que se assustaram muito com o fogaréu na sua casa? Foi cama, berço, guarda-roupa, parede da sala, tudo lambido e devorado pelo fogo. Choraram muito e os vizinhos solidários os convidaram a pernoitarem em suas casas. No outro dia, não se preocupassem, todos, em mutirão, levantariam paredes, trariam roupas para as crianças, que na hora do incêndio estavam com eles, pela graça de Deus,e,conformados, mas sem quererem incomodar mais os amigos, resolveram que aceitavam a barraca para então dormirem no pomar mesmo, no conforto da casinha de pano; só as crianças seguiam com eles para passarem a noite.

Seis anos se passaram do incêndio e nem mais pareciam os mesmos. Reconstruíram tudo com o recurso do seguro e dos vizinhos e prosperaram. E a família aumentara. Tinham agora a Luciana, menina alegre e muito espoleta, que, nas contas da Fatinha, fora gerada na noite do incêndio. Fatinha não sabia explicar, mas nem se lembrou de usar o expediente ensinado pela parteira, nem nunca mais precisou de recurso extra algum. Aquele seu sono besta fora-se embora com as labaredas, e o Tíbi, concordava sem parar com a cabeça, num jeito alegre de balançar-se na cadeira e sorrir,agora como nunca antes conseguira. As crianças, não se sabe se a exemplo da mãe ou contagiados da alegria da irmãzinha caçula, não mais dormiam pelos cantos nem na hora do banho.

Neusa Storti Guerra Jacintho
Enviado por Neusa Storti Guerra Jacintho em 04/08/2008
Reeditado em 29/11/2009
Código do texto: T1111802
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