O PIC NIC

Já havia anoitecido...

O ônibus corria célere pelo asfalto bem conservado característico de estradas pouco usadas.

O cansaço era geral e quase todos dormiam...

Apenas dona Biu, sentada no primeiro banco, junto à porta não parava de falar com o seu Epaminondas, o motorista.

Ela avisara que não deixaria seu Epaminondas dormir de jeito nenhum.

Afinal, saíra de casa, do seu conforto, das suas costuras e do programa de Silvio Santos para se distrair um pouco da monotonia de sua viuvez, não para sofrer um acidente.

Os preparativos para o passeio haviam começado uma semana antes quando dona Ritinha, na saída da missa das nove, lembrou que os dias já estavam muito quentes e que todos poderiam ir para uma praia distante, fazendo um pic nic como os de antigamente.

Ao todo dez famílias confirmaram presença.

Tudo fora previsto, hora para tudo, lanche para todos.

Na véspera, a assanhada da Marieta, foi chorando se queixar da dona Biu que Malaquias, seu marido, nem ia, nem queria que ela fosse.

Dona Biu, matrona de idade indefinida, cabelos mais brancos que louros, cortados curtos, encaracolados, olhos de um azul profundo, rosto gordo, sorridente, sempre exibindo um canino encastoado de ouro com um coração cortado no amarelo, deixando entrever o esmalte muito branco do dente que fora salvo graças à perícia do Dr. Dermeval e graças também, e principalmente, à interferência de São Severino dos Ramos, de quem dona Biu havia herdado o nome e cultivava a maior fé.

Malaquias já estava deitado...

Resmungou algo para Marieta que dona Biu ouviu sem entender.

Não se fez de rogada, empurrou a porta e entrou.

Malaquias só de cueca, tentou se cobrir, mas dona Biu disse:

- conheço essa pinta bem antes de você seu cabra, que história é essa de não ir para o pic nic?

Se amanhã vocês não estiverem lá, logo cedo, eu venho buscar...

E iria mesmo, pois dona Biu, parteira madrinha de toda aquela gente, nunca recusava uma parada por mais indigesta que fosse.

Além do que, quando ela falava, era para ser atendida.

Como diziam os romanos, Roma locuta, causa finita.

As decisões de dona Biu eram para serem obedecidas e fim.

Dona Biu voltou quase correndo para casa, pois tinha deixado a panela no fogo com a galinha guisada que seria levada para o passeio.

Dia seguinte, levantou muito cedo, preparou farofa de ovos, o arroz branco e o refresco de maracujá que encheu a garrafa térmica de cinco litros.

Por ser das grandes, a garrafa térmica não coube na cesta de pic-nic.

Teria que ir numa sacola separada, mas não tinha problema, os cinco litros de satisfação estavam garantidos.

Neta iria adorar...

Pe. Abílio rezou a missa às cinco horas da manhã, para que todos pudessem se divertir, já tendo cumprido a obrigação domingueira com o Senhor.

O ônibus sairia às seis em ponto do largo da igreja.

O café tomado às pressas, as caras meio sujas, ainda sonolentas das crianças, tudo seria recompensado nas maravilhosas horas de entretenimento, com o balanço do mar, suas águas tépidas, com o vento forte e cheiroso à maresia...

... Seria um grande dia.

Os mais velhos vieram vestidos a caráter.

Camiseta, bermuda, boné e a sacola ao lado.

Seu Epaminondas ganhara a concorrência para fornecer o transporte pela simples razão de ser seu ônibus um bagageiro da Ceasa que no domingo não saia de casa.

Então ele cobrou só o combustível, pois ele também iria com a família e não era justo que os outros pagassem para ele se divertir.

Chegados à praia de Porto de Galinhas, surgiu um problema de fácil solução.

Local para trocar de roupa, era a questão.

Depois de muito falatório, dona Ritinha lembrou que havia levado um cobertor para se enrolar, caso sentisse frio à noite quando estivesse voltando.

Improvisaram uma barraca dentro do ônibus e as mulheres puderam vestir as roupas de banho sem serem vistas pelos homens.

E haja jogo de bola, brincadeira de agarrado e caldos durante toda manhã.

O sol a pino anunciava que a metade do dia já se fora.

Crianças que metidas n’água desde cedo, estavam tremendo de frio, lábios roxos, dedos engelhados e olhos vermelhos de sol, sal e areia.

Enrolada na toalha e sentada no chão sob a sombra dos coqueiros, dona Ritinha, colocou no colo o caldeirão com feijão cozido com todas as verduras e foi acrescentando o arroz branquinho, a farinha quebradinha vinda de Vitória. (tio Tonho tinha mandado preparar no capricho) a galinha guisada.

Depois de tudo muito bem misturado com a mão, os bolinhos foram aparecendo um a um e sendo imediatamente devorados, lógico que depois de dar uma meladinha no caldo do guisado que ficara reservado num depósito tupperware, previamente separado para tal fim.

Sabe menino como é, né?

Todos querem ser o primeiro e sem querer, tadinho, Neta magoou o caroço da cabeça de Galego, o menorzinho de dona Mércia.

Foi um deus nos acuda...

O caroço estourou e haja pus sanguinolento a correr da cabeça, mais careca que loura pixaim de Galego, que botou a boca no mundo a chorar.

Talvez pela falta dos dentes que tinham sido consumidos pelas cáries precoces, o choro saia mais fácil e alto, misturado aos tutanos de catarro que desciam das narinas em direção à boca muito aberta.

Aí dona Biu que tinha o curso de enfermeira prática e era também parteira, mesmo que fosse para um pic nic, não saia de casa sem levar sua bolsa, mistura de bazar de turco com farmácia bem sortida, deu um jeito com anasseptil-pó, gase e esparadrapo.

Tamponado o problema, continuou-se o almoço até que fartos, todos foram se afastando.

Dona Ritinha ainda comeu alguns bolinhos já a essa altura sem a meladinha, pois o caldo já se esgotara.

Mas para compensar, tinha todos os ossinhos da galinha, com aquele caldinho maravilhoso dentro.

Algumas lambidas e chupadas nos dedos para tirar os restos de farinha e estava terminado o almoço.

Seu Antão serviu mariolas para alegria geral.

Aquele sabor doce depois de tanta água salgada era uma benção.

- vamos passear um pouco para fazer a digestão.

Dizendo isso dona Ritinha aproximou-se da água e abruptamente voltou-se para a praia...

Olhou em todas as direções, apanhou algo azul e gritou por Chiquinho.

Ninguém respondeu...

Espanto geral...

Todos se entreolharam quando dona Ritinha veio correndo da água para perto do grupo com o boné de Chiquinho na mão, já em prantos.

- dona Biu, a senhora não viu Chiquinho, não?

- depois do almoço ele foi para o mar...

Neta não conseguiu terminar a frase com o encontrão que dona Biu deu nela.

Nessa altura, dona Ritinha aos berros, estava correndo como louca pela beira d’água.

Todos saíram a procurar.

Tudo indicava que Chiquinho tinha ido tomar banho logo depois do almoço, tinha tido uma congestão e estava morto.

O pânico era geral, choros, gritos até que seu Epaminondas resolveu ir buscar ajuda na delegacia.

Era distante, o sol muito forte e ele entrou no ônibus.

Deitado no primeiro banco, farto de sol, de banho de mar, de estomago cheio de bolinhos de feijão com farinha, arroz e galinha guisada e principalmente de muitos goles no Ron do Pe. Abílio, Chiquinho dormia a sono solto, indiferente a todo drama vivido pelos integrantes do pic nic por causa de um boné largado n’água na hora de correr para o almoço.

Depois do caso passado, dona Ritinha, ajoelhada junto a um coqueiro, rezou dez ave marias em agradecimento a Nossa Senhora Rainha dos Aflitos.

O resto do dia transcorreu sem novidades até que o cansaço avisou que era hora de voltar.

Nada de banho doce.

Bateram a areia o melhor que puderam, vestiram a roupa por cima dos maiôs e voltaram tranquilos para casa.

Por muito tempo ainda se falaria nesse pic nic