A FAZENDA FLORES

Noite de lua cheia...

Céu com poucas estrelas devido à luminosidade da lua.

Dona Toinha, com as dores do parto, se retorcia na cama.

Ao seu lado dona Maria dos Anjos, sua mãe (que deus a tenha em sua santa paz) procurava acalmá-la enquanto o Cel. Cícero providenciava para que fossem buscar a parteira.

A fazenda Flores ficava distante de tudo.

O bom inverno dificultava ainda mais o acesso à fazenda.

As estradas lamacentas eram desafio para os melhores cavaleiros.

A caleça quebrada, pois caíra num buraco na véspera, não podia ser utilizada para ir buscar a parteira.

O Cel. Cícero foi incisivo quando ordenou

- leve meu cavalo e traga comadre Mocinha agora. Tonha já ta cum dô di minino.

Biu cego não pestanejou.

Selou o cavalo baio do padrinho e em pelo mesmo montou no burro e danou-se na estrada em desabalada carreira.

Quando a parteira chegou, dona Toinha já havia parido e a parteira tinha sido a avó do menino.

Um meninão...

Oitavo da família.

O Cel. Cícero foi olhar o filho e sentenciou:

- vai se chamar Abílio e vai ser padre.

No dia seguinte, tomando café da manhã com o Pe. Ildefonso pároco de Buique, que tinha ido ver a criança e a mãe dela, o Coronel quis logo saber como faria para mandar o menino para Roma para virar padre.

O Pe. Ildefonso, italiano velho, explicou pacientemente como ele deveria fazer e por fim fez a recomendação mais sensata.

- Cel. Cícero, espere pelo menos dez anos para fazer as malas do menino.

Abílio cresceu forte e sadio como seus treze irmãos, todos já com o destino traçado pelo pai, homem de poucas palavras e muita ação.

Num dia vindo ao Recife, o coronel contratou uma professora primária para lecionar na fazenda, pois o coronel não queria saber de analfabetos por perto.

- você qué trabalhá comigo, seu cabra?

- quero sim seu coroné!

- sabe lê?

- sei não sinhô!

- qué aprendê?

- oxen! Adonde já se viu papagaio veio aprendê, cononé?

- apois se num quisé aprendê, pode ganhá a istrada. Burro aqui só eu i us bicho

Mas se o cabra quisesse aprender, ficava e todo dia tinha aula.

As lições eram dadas durante a semana, depois do jantar.

Durante o dia eram os filhos do coronel e os filhos dos trabalhadores que ainda não tinham idade para pegar no serviço.

Além das matérias curriculares, a professora ensinava piano, latim, francês, labirinto (só para as meninas) e canto orfeônico.

Nos domingos era a coisa mais linda do mundo se ouvir o coral formado pelas crianças da fazenda (os filhos do coronel e dos empregados) mais a professora tocando órgão e cantando na missa das nove.

Libório, filho mais velho, logo cedo começou namorando Maria do Carmo, a irmã mais nova da professora, dona Apolônia, que veio com ela para a fazenda e antes dos vinte anos, já estavam casados.

Quando Abílio completou onze anos, o pai o trouxe para o seminário de Olinda.

Os irmãos mais velhos já haviam sido encaminhados para as profissões determinadas pelo pai enquanto ainda estavam no berço e tinham visto pela primeira vez aquele homem grandão, magro, chapéu de abas largas, barba longa, sempre vestido de linho branco, botas de cano alto, falar compassado, olhos bondosos e vontade de ferro.

Quando tomava uma decisão, nada abalava sequer a certeza de que ia alcançar.

Quatro anos no seminário menor, três no seminário maior os votos de hostiário, acólito, presbítero e finalmente padre com direito a sotaina, chapéu coco e faixa na cintura.

A primeira missa celebrada na igreja de Buíque foi a consagração para o coronel que via assim realizado mais um sonho antigo.

Mas o trabalho não estava completo.

Precisava mandar o filho para Roma.

De lá, após cinco anos no seminário do Vaticano, Pe. Abílio voltaria doutor em teologia católica.

Tudo foi feito porem o coronel não teve esse gostinho final.

Morreu no mês de setembro do ano em que o filho defendeu o doutorado.

Morte ingrata para o coronel.

Pela manhã, botando comida para os bichos, um sagui não saiu da casinha.

O coronel tirou a tampa e o animal não se mexeu.

Pensando que era brincadeira, o coronel tentou pegar, mas o bicho mordeu-lhe a mão e transmitiu o vírus da raiva.

O coronel enxugou o sangue e pediu sem sair da varanda.

- dona Tonha, vigie o pó pá tapá taio.

À noite o sagui estava morto e o coronel na cama, ardendo em febre.

Não teve reza, nem chá que desse jeito.

O coronel teve que ser amarrado na cama, olhos vidrados, contrações musculares, espuma pelos cantos da boca e pelo nariz.

Em menos de dois dias, antes que o médico chegasse, o coronel estava morto.

A notícia da morte do coronel se espalhou como cheiro ruim, rápida e incomoda.

Era boquinha da noite quando aconteceu...

Dona Toinha teve um passamento...

Acenderam a vela, mas ninguém teve força de abrir a mão do coronel. Deixaram num pires, junto com o copo d’água contendo a dentadura, sobre a mesinha de cabeceira.

Biu cego saiu na carreira para buscar o padre e pelo caminho foi avisando o acontecido a todos que encontrou.

O efeito multiplicador da má notícia se viu dentro de pouco tempo.

Aos poucos foram chegando compadres, afilhados, favorecidos, agregados e até inimigos políticos vieram fazer a sentinela àquele que, em vida, foi o mentor de dez léguas em redor.

Dona Mocinha que era parteira, era também encarregada de costurar as mortalhas dos habitantes de Buique.

Passou na loja de seu Salim, comprou cinco metros de pano branco, do mais alvo que tinha e seguiu para a fazenda.

Pelo caminho já foi cantarolando, muito contritamente, as orações da sentinela. As “incelenças” que tão bem sabia entoar.

Enquanto discutia o preço do pano, mandou recado para umas cinco conhecidas para que fossem vestidas de luto para fazer a resposta da reza.

Por baixo dos panos ficou acertado com seu Salim que seria incluído na conta um débito antigo de dona Mocinha.

Na fazenda, Chiquinha, cozinheira de mão cheia, estava preparando broa de milho para o jantar quando ouviu o alarido com a morte do patrão.

Foi olhar o defunto e voltou para a cozinha sem dizer nada.

Desde que era mocinha, vinda de Curral Velho, sertão da Paraíba, parou por um momento da Fazenda Flores para descansar.

Estavam fugindo da seca inclemente que estava queimando tudo.

O pai e os irmãos dependiam dela para tudo.

Apesar dos seus quinze anos era a dona da casa.

A mãe havia morrido de parto na estrada, sem socorro, sem auxílio, presa fácil da ignorância e da religiosidade alienante e doentia.

O coronel jamais havia negado auxilio a quem quer que fosse.

Amparou aquela família, oferecendo dinheiro e moradia em troca de trabalho.

Dois dias depois, já refeitos da canseira e de estômagos fartos, os paraibanos já estavam integrados à rotina da fazenda.

Dormiam todos no galpão...

O coronel falou então com Severino, pai de Chiquinha que não era bom uma moça já na idade do viço, dormir junto daquela marmanjada toda.

Nessa mesma noite Chiquinha foi dormir num quarto dentro da casa grande.

Numa noite enquanto todos dormiam, o coronel mansamente, levou-a para o sobrado e fez dela uma mulher completa.

Prometeu mundos e fundos e que ela permanecesse calada que seria a mulher dele.

Que se casaria com ela logo que dona Toinha morresse de parto, coisa muito provável, até a mãe dela tinha morrido... e Chiquinha foi, durante muitas noites o aconchego do coronel enquanto todos dormiam.

Quando as chuvas voltaram, Chiquinha viu o pai e os irmãos voltarem para a Paraíba. Ela jamais sairia de perto do coronel... a barriga pela boca e ela jurando que era de um também retirante da estrada.

Quando dona Toinha teve o passamento, foi um alarido enorme.

Filhas e ajudantes da casa fizeram de tudo para que a matrona retornasse...

Álcool canforado friccionado nos pulsos e dado para cheirar, foi uma zoeira, um vendaval, apenas dona Apolônia, a professora que há anos morava na fazenda, não se moveu do lugar.

Estava lívida, estática na cadeira de balanço, com o terço na mão e os olhos fixos nos rebordados de madeira por cima da porta do quarto do coronel.

Ela sentiu nesse momento as mãos peludas do coronel apalpando-lhe as coxas, os peitos, o pescoço e em transe de gozo, como muitas vezes acontecera, desmanchou-se em lágrimas como nas noites em que o coronel havia feito ela delirar.

Tudo começara dias depois de sua chegada à fazenda.

Sentados nos cadeirões da varanda até tarde, sob a luz das candeias, dona Toinha logo pegava no sono junto com a mãe.

As crianças não participavam da conversa que era coisa de gente grande. Assuntos de guerra, economia, seca, gado, café, planos para o futuro... dona Apolônia acompanhava o raciocínio do coronel na evolução do pensamento, coisa que dona Toinha não conseguia e essas conversas foram o passo para o amor safado nascido entre os dois.

Aparência respeitosa, durante todas as horas do dia, na missa dos domingos, na caleça quando iam passear com as crianças, andando a pé observando a criação a conduta dos dois era irrepreensível.

O tratamento de senhor e senhora era sempre usado no lugar dos nomes.

Nunca ninguém ouviu o coronel chamar a professora pelo nome nem ela chamar-lo por outra coisa que não coronel.

Mas quando as portas se fechavam, quartos separados apenas por uma porta, dona Toinha roncando, era um agarrado de tirar fogo.

A primeira vez foi quando dona Toinha estava no Recife.

Foi a noite toda.

Dona Apolônia já não era mais nenhuma menina, as carnes rijas e virgens sentiram toda fúria do macho assanhado.

Nunca emprenhou, era maninha, também eram raras as menstruações coisa que muito facilitava o coito entre os dois.

Muitos anos atrás, numa noite de muita chuva, dona Toinha acordou com um vagido na varanda.

Chamou o coronel e foram de candeia na mão, ver de onde vinha.

Num canto, perto da porta, envolto em molambos, ainda sujo do parto e com o umbigo para cortar, encontraram a criança quase morta de frio.

Dona Toinha, coração de ouro, levou o menino para dentro, cuidou de limpa-lo, agasalhou e deu de mamar ao menino que mais parecia uma rã, magro e desnutrido, fazendo assim com que ele se tornasse irmão de leite de Libório, o primogênito recém nascido.

Era o dia de São Severino dos Ramos e o coronel fez para o pequeno achado, a sentença que se tornaria sua marca registrada.

- você vai se chamar Severino, Biu para os de casa, e vai ser o melhor capataz que já existiu.

E assim foi.

Mas Biu era muito destabanado, batia em tudo, derrubava tudo, quebrava tudo e o coronel morria de rir com as loucuras do filho adotivo.

Era meio burrinho, mas tinha interesse em aprender.

Num dia, juntando o gado, caiu do cavalo e furou o olho no espinho da folha do gravatá.

A partir desse dia, ficou sendo chamado Biu cego.

Quando Biu cego saiu para dar a notícia da morte do coronel, foi como nos tempos de menino.

Saiu batendo em tudo, se enganchou na cadeira de balanço da varanda e foi se estender no terreiro com a cara no chão e quando passou pela porteira, rasgou a camisa no arame farpado.

A fazenda Flores era também conhecida pelo trato que se davam aos detalhes.

Animais em lactação, tinham sempre leite para as crias pois o coronel jamais permitiu que se tirasse todo o leite.

Os piquetes eram separados por cerca de arame farpado, mas protegidos por cerca viva de trifoliata para evitar acidentes.

O avelós só era usado para as cercas que limitavam a fazenda.

Mourões de algarobas ou laranjeiras.

Havia sempre pasto fácil e abundante para o gado pois nenhum piquete era usado até a exaustão.

A água que brotava de um lajedo todo cercado com algaroba, praíba, braúna, pau-brasil, angico, jurema e todos os tipos de cardeiros e palmas que o povo trazia para o lajedo do coronel.

Quando recebia uma planta nova, o coronel agradecia com um copo da água mais doce e naturalmente gelada da redondeza.

Das panelas cavadas por milhares de gotas d’água nos muitos séculos, corriam filetes que eram canalizados para cisternas que o coronel mandara fazer.

De lá eram bombeadas para as partes altas da fazenda e por gravidade, a benfazeja água alimentava as plantações, o gado, os homens.

Nada se perdia, nada se estragava.

Os cata ventos trabalhavam como a natureza, o dia todo todos os dias do ano e assim a pouca água que brotava era bastante para alimentar aquele oásis de verdura na paisagem seca do sertão.

Na entrada da fazenda além da porteira com o mata burro de lado, tinha uns cinco metros de cerca em forma de U.

Quem vinha pela estrada não via a porteira por causa do avelós compacto.

Samarica, quartinheira antiga, fazedoura da louça mais fina e delicadamente bem trabalhada que se tem notícia, vinha com o balaio cheiro.

Biu cego bateu de frente com ela e foram ao chão.

Samarica com seus cento e tantos quilos, Biu cego e o balaio com as quartinhas que viraram farofa.

Com agilidade imprópria para seu volume, Samarica despejou sobre Biu cego toda sua ira, por ver perdido num único momento, todo trabalho de mais de uma semana.

Só parou de bater quando Biu cego conseguiu fazer com que ela entendesse que o padrinho havia morrido.

Quando Samarica chegou à fazenda depois de ter tomado banho e vestido luto para a sentinela, encontrou a maior peleja.

Dona Mocinha queria que o defunto fosse vestido com a mortalha própria de qualquer cristão que vai ao encontro do criador.

Dona Toinha queria que ele fosse com a farda da gloriosa Guarda Nacional, da qual o marido era coronel com muito orgulho.

O caso foi resolvido por Libório, herdeiro universal da autoridade paterna.

- o pai vai vestido de coronel. Não fica bem, para um homem da qualidade dele, chegar ao céu vestido de saia.

A sentinela foi das mais concorridas.

Muitos bules de café, muita broa de milho, bolos de fubá e de mandioca, cafofa de umbu, paçoca de amendoim, alfenim, rapadura com queijo de cabra, biscoito de polvilho, bolachas de cego... nada escapou da fome dos presentes.

As orações da sentinela, sendo entremeadas pelas orações do terço puxados por dona Donzinha, a professora de catecismo da paróquia.

O tom monótono das orações foram aos poucos sendo acompanhados pelos gorjeios dos pássaros madrugadores que anunciavam que o derradeiro dia do coronel sobre a terra estava começando.

Apesar do transtorno, o dia a dia da fazenda não foi alterado.

O gado reunido, o estábulo lavado, os demais animais alimentados convenientemente.

Libório cuidou de tudo para que a partir daquele dia, nada se modificasse para pior.

Antes da saída do cortejo para a igreja de Buíque, todos tomaram o café da manhã com cuscuz, broas, bolos, macaxeira, guisado de cabrito, queijo e muito leite.

O coronel foi levado na rede de algodão cru onde muitas vezes ficara horas esquecidas se embalando e meditando nas coisas da vida.

A missa de corpo presente, celebrada pelo Pe. Ildefonso já muito velho, foi acompanhada pelos filhos do coronel que junto com dona Apolônia, cantaram os salmos de réquiem.

Tudo em latim.

Os sinos, que o coronel havia mandado buscar na Bélgica, dobraram finados, anunciando aos céus que o benfeitor da paróquia estava sendo sepultado.

Já era noite quando chegaram de volta para casa.

Os sete dias de luto foram cumpridos conforme o preceito, mas a partir dali, Libório deu novo ritmo às coisas.

A fazenda passou de produtora de subsistência para produção industrial, exportadora de tecnologia aplicada.

Sobre o conhecimento empírico do coronel, Libório aplicou as técnicas aprendidas na faculdade onde fizera os cursos de agronomia e veterinária quase ao mesmo tempo.

Houve uma onda de progresso e aceleração nas atividades apenas os costumes foram conservados.

Conversas na varanda depois do jantar, iluminadas pelas candeias alimentadas pelo gás do biodigestor.

Nessas ocasiões a lâmpada elétrica ficava desligada.

Algumas vezes, a conversa era animada pelo crepitar festivo da fogueira, mas para poupar lenha, eram raras essas ocasiões.

O gás produzido pelo biodigestor servia para secar os grãos, mover moendas e forrageiras além das cozinhas da casa grande e dos moradores.

A inseminação artificial para melhoria do padrão genético e muitas outras modificações imperceptíveis aos olhos, mas que modificavam por dentro, foram sendo introduzidas.

E foi para essa fazenda que o Pe. Abílio voltou quando terminou o curso em Roma.

Reviu os irmãos que ainda moravam em Buíque, a mãe a antiga professora, os antigos colegas de brincadeiras.

Num belo dia chegou a carta do bispo mandando que ele assumisse a paróquia da Vila Pedreiras.

Começaram então os preparativos para mudança.

Pe. Abílio de agora em diante, somente voltaria à fazenda Flores nas férias que por acaso pudesse tirar.

Com muito custo conseguiu convencer a dona Toinha que não havia necessidade de Chiquinha ir com ele para servir de empregada na casa paroquial.

Nem sequer sabia se havia casa...

Com a família toda na varanda, Pe. Abílio montou na caleça e pediu ao irmão de criação.

- Biuzinho me leve logo que o caminho é longo e a sopa vai passar em Buique já, já.

Acenou para a família e a caleça passou por sobre o mata burro...