O DESFILE

Jaminho saiu de casa antes das quatro da madrugada. O sargento tinha sido taxativo.

- Quem não estiver aqui até quatro e meia, fardado, sem uma prega na roupa, bem barbeado, coturnos engraxados, pega uma semana de xadrez.

Seu Ovídio passou a véspera toda engraxando os coturnos do filho.

Afinal seus trinta e tantos anos de engraxate na calçada do Savoy, tinham lhe dado prática e qualidade invejáveis.

Dona Laurinha, lavou e engomou a farda no ferro de brasa, limpo e passado vela no fundo que era para não pegar, sem uma prega, cheirava a coisa limpa.

Moravam na favela Arraes e de lá para o quartel do 14RI era um bom pedaço para pegar taxi.

Iria de carona com Lourenço, colega de farda.

Seu pai iria passar na pista.

Bem barbeado, cabelo cortado no quartel, cheiroso como filho de barbeiro, Jaminho beijou a mãe e o pai.

Foi até o quarto olhar Livinho, o caçula e saiu.

Estava frio.

Fim de inverno pesado, início acanhado de verão.

Andava com cuidado para não meter o pé no rego.

Três barracos adiante bateu, Cristina, a namorada, apareceu com o cabelo assanhado vestindo a camisa velha do Galo da Madrugada que servia de camisola, entreabriu a janela, puxando a camisa para baixo para cobrir a calcinha.

Dentro do quarto, a penumbra.

Os contornos revelados pela vela recém acesa nos pés de Santo Antonio.

Beijo longo.

- Vejo vocês na Conde da Boa Visa, na arquibancada na frente do Marista do lado da EMTU.

- Cuidado. Ainda está muito escuro.

Com a facilidade de quem mora há muito tempo no bairro, Jaminho chegou à Avenida Afonso Olindense e ficou sob a luz do poste para poder ser reconhecido por Lourenço.

Do outro lado da rua, os retardatários no bar dos motoristas.

Caras conhecidas.

Olhos arriados, sonolentos.

Na radiola de fichas, boleros de Waldick Soriano enchiam de som aquele quase amanhecer.

A luz de um carro surgiu do lado da Caxangá. Antes que ele chegasse, um bêbado surgiu do nada e olhando dentro dos olhos de Jaminho, disse com a voz pastosa, fedendo a álcool:

- Um frango de macumba, fantasiado de galinha verde há, há, há, hi, hi, hi, hi.

Jaminho empurrou o bêbado que foi se estender no canto do muro.

O carro chegou. Enquanto era apresentado ao pai de Lourenço, o bêbado conseguiu ficar de pé com uma pedra na mão direita enquanto se segurava no poste com a esquerda, ameaçou quebrar o para brisa dianteiro.

Outro empurrão e o bêbado saiu catando graveto até bater com a cara na calçada.

Entraram no carro que saiu em velocidade em direção ao quartel em Socorro.

Eram quatro e vinte e cinco quando chegaram ao portão.

O Sargento Pereira, no Corpo da Guarda, recebeu os recrutas com um sorriso largo.

A sua tropa estava completa.

Foram para o rancho e de lá para o caminhão que os levaria para a Praça do Derby local de concentração para o desfile.

O 14RI seria o último a desfilar.

O carneiro mascote estava sendo escovado para receber a bandeira do regimento em formato de sela e pacientemente se sujeitava a toda aquela pantomima.

A emoção era grande demais para resistir.

O recruta que iria desfilar com o mascote, teve uma dor de barriga e correu para o alojamento.

Não houve tempo para chegar à privada.

A diarreia foi mais rápida e encheu a farda limpa.

O soldado estava desesperado, correu mais ainda, espalhando fezes por todo caminho até o alojamento.

A tropa formada junto ao caminhão foi respondendo mecanicamente à chamada.

Quando o Sargento chamou pelo número dezesseis, alguém avisou que ele tinha ido à privada.

Finda a chamada, o sargento foi atrás verificar o porquê da demora.

O soldado estava na privada, nu, todo sujo e chorando.

O Sargento Pereira, paternalmente, mandou que ele vestisse a farda de instrução e que ficasse esperando a volta dos colegas.

Ele também teria os três dias de folga como os demais.

- Mas Sargento, era a única oportunidade de minha vida de desfilar... fardado... no sete de setembro... levando o mascote Bazuca com a bandeira do Regimento... com o General assistindo ao desfile...

O soldado dezesseis estava inconsolável.

- Soldado, vá se limpar, se vista e aguarde minha volta.

Dito isto, o sargento deu meia volta e saiu do alojamento. Foi o último a subir no caminhão. Quando chegaram ao Derby, a tropa formada, o sargento comunicou.

- Soldados, o recruta dezesseis não pôde vir... teremos que escolher outro para desfilar com Bazuca.

Os voluntários deem um passo à frente.

O sargento escolheu Jaminho.

O contraste era perfeito.

Bazuca era branco, lanudo, pequeno e gordo; Jaminho era negro azulado, cabelo quase rapado, um metro e noventa de altura e magro. Fariam uma bela figura.

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Depois que o filho saiu dona Laurinha ainda deitou, mas não conseguiu dormir...

Era emoção demais...

Lembrou do filho pequeno nas primeiras brincadeiras, a primeira vez que foi fardado para o Grupo Escolar Cândido Duarte, no dia da primeira comunhão ele estava lindo todo vestido de branco, no altar lendo trecho da bíblia que mal podia carregar de tão pesada...

Era muita emoção para uma mãe.

Levantou-se, fez o café, chamou o marido e o filho pequeno.

Eles não podiam atrasar de jeito nenhum. Tinham que chegar ao centro antes que as passagens fossem fechadas por conta do desfile.

Os ônibus tinham sido desviados e estavam passando na Oliveira Lima.

Teriam que descer na frente do Colégio Nóbrega, atravessar pela EMTU e arranjar um lugar na arquibancada.

De lá, depois do desfile, iriam para a praia de Boa Viagem.

Além da independência se comemorava a abertura oficial do verão.

Iriam desfilar o Clube do Pinguim, Banhistas do Pina, Frevioca com Claudionor Germano, peruca e tudo mais.

Na cesta de pic nic colocaram laranja já descascada, banana, galinha guisada, farofa de ovos, biscoito waffer de abacaxi, garrafa com água, chupeta sobressalente para Livinho.

O desfile ia começar às nove horas em ponto. Saíram de casa antes das sete e meia para dar tempo.

Seu Ovídio carregando a cesta, ia vestido a caráter, camiseta amarela, bermuda verde, sandália japonesa azul boné branco com a faixa plástica amarela escrito “Prá Frente Brasil” resto de um campeonato de futebol, guardado com carinho.

Por baixo da bermuda, o calção de banho.

Dona Laurinha de calça jeans, camisa de meia, estampada com o cata vento verde e amarelo símbolo da semana da pátria, sandália japonesa e uma tiara de flores coloridas na cabeça.

Livinho não quis deixar a chupeta em casa.

Encontraram Cristina no ônibus.

Ela tinha ido para o terminal para poder pegar lugar sentada.

Quando Jaminho saísse do quartel, iria encontrá-los na praia em frente ao Acaiaca...

Com muito custo, conseguiram um bom lugar na arquibancada.

Gente prá todo lado.

Um calor de rachar.

O desfile ia começar.

Como uma serpente sem fim, os pelotões iam desfilando... o Governador do Estado veio escoltado pela cavalaria... toques de corneta, continências, tudo que o protocolo exigia foi cumprido numa demonstração insossa e sem finalidade...

- Lá vem Jaminho com o carneiro do catorze... e Cristina caiu no choro de emoção.

Dona Laurinha, ficou de pé, batendo palmas...

Sentou-se de vez, quase desmoronando no degrau, sobre a táboa que servia de assento.

Estava lívida, passando mal mesmo, de tanta alegria. Alguém disse:

- Acho que é por causa do calor...

E outro alguém despejou uma garrafa de água gelada na cabeça dela...

Aos poucos dona Laurinha foi tornando, as cores reaparecendo.

O desfile terminou com a mesma pantomima inútil do início.

Seu Ovídio colocou a cesta de pic nic na cabeça e saiu na frente abrindo caminho até a estação central.

Foram de trem até a estação de Boa Viagem.

Os ônibus para o centro estavam mais vagos que os do centro para os bairros.

Já fazia algum tempo que estavam na praia quando Jaminho chegou para desfrutar das maravilhas daquele dia de muito sol.

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Passada a licença, Jaminho ia fardado para o quartel, quando encontrou Lula Arroto que lhe informou:

- Os irmãos daquele bêbedo que você bateu, disseram que vão te pegar para ver se você é valente mesmo.

- Onde é que eles moram?

- Na cidade Universitária.

- Bora lá?

- Agora?

- Não, quando eu voltar do quartel.

- Tá combinado.

E Lula deu um arroto gigante dizendo, - até a volta.

Ele era o “campeão de arroto falado” do bairro.

No quartel Jaminho conversou com o sargento e perguntou.

- Sargento Pereira. O que é que um soldado deve fazer para limpar sua honra?

- O quê?

- Quando alguém faz pouco de nossa farda, o que a gente deve fazer?

- Matar o inimigo!

- E se não for inimigo?

- Os amigos não fazem pouco de nós, só os inimigos que devemos eliminar, sem piedade.

- Se eu fosse atacado... se eu apanhasse na rua... se eu desse em alguém... o que é que acontecia?

- Você é um soldado do Exército Brasileiro. Um soldado não apanha. O soldado é o homem. O resto é bandido, comunista, inimigo da pátria ou padre safado.

- Tem uns caras lá que estão me ameaçando. Disseram que vão me pegar hoje.

- Vão pegar a maior surra da vida deles... vamos a casa deles agora.

E nessa noite os plantonistas do Hospital da Restauração tiveram muito trabalho extra...