CACOETES & CACOETES

Expressar-se oralmente, com aprumo, não parece nada fácil. Isto aqui é serviço para uso de poucos e privilegiados. Não é que se deva ser escorreito, com salamaleques, afetado à camoniana. Por mim, quando abro a boca, em público, falo francamente, digo que sou e sou mesmo gago. Embatuco, às vezes, com as palavras. Saio de rojo, fico meio rubro no meio-fio das construções.

Você pode botar os verbos no lugar, endireitá-los de acordo com o sujeito da oração, não cair na esparrela das regências, nem entortar a concordância dos nomes. Pode, sim. Acontece também de você executar tudo nos conformes, até mesmo enfiar direitinho os pontos nos is, consoante as normas requintadas do figurino gramatical.

Apesar de todos esses acautelatórios citadinos, de povinho burocrático e barnabé, apesar desses hábitos “gravata e colarinho”, quem me afiança com garantia de cartório que você não vai tropeçar com as ventas no batente de um cacoete? Cacoete é coisinha chinfrim, de que o freguês da linguagem nem se apercebe. E ocorrem cacoetes & cacoetes, vários, de montão, na comunicação oral entre falantes, os mais pavões e cacoetes arco-íris possíveis.

Não me quero referir a outras modalidades de cacoetes, além dos marcos linguísticos, mas, quando me achei na garupa de uma carteira do Liceu, ali pelos anos que já lá se foram, por lá militava um camarada escolar que, escreveu e não leu, metia as espátulas digitais pelo gorgomilo, remoendo e jantando as unhas, na maior cara-de-pau. Puxar conversa com o tal sujeito era tiro e queda: suas unhas viravam-lhe a goma de mascar mais apetitosa. E quando ele também dava para cutucar as ventas? Hum, eca, aí o papo se tornava nojento.

“– Você entendeu, hein, você compreendeu?” – fazia ele, sempre tocando no ombro da gente, ao final de cada minuto.

O mundo está infectado de tipos que abusam do “você compreendeu?”, do “então” e do “aí”. Li texto gravado de um intelectual, sem o ridículo de achar que aquilo fossem “erros”, encharcado e recheado de centenas de “né”, o que estes não deixavam de marcar cacoetes.

Em bate-papo de vou-ali-e-já-volto, num vapt-vupt, ao sopé do balcão de meu pai, assisti ao sestro de que, até hoje, não obstante seja puro cacoete, ainda mais gosto de citar como coisa perigosa de se dizer, numa sessão de conversa.

A mulherzinha nova de um trocador de ônibus narrava para minha mãe o flagrante delito que aplicara no marido, quando este fora apanhado em funções de namorico, um xodó proibido – para ela, claro – fora das beiras de casa.

Volta e meia, volver, a mulherzinha jovem lançava seus “scuds”: – Sim, muié... Aí, muié, aí... Aí o bicho nojento... Aí...

Para findar a história, só comecei a contar os “aí” depois que vi que a coisa estava feia e era demais para as minhas ouças. Pois bem... Desprezei a quebra do lá de trás, abri bem as oiças, azeitei os tímpanos e, ta-ta-tá, nos quatro ou cinco minutos que sucederam ao derramar-se da confidência, computei em cifras senão redondas porém exatas: quarenta e nove vezes a palavrinha “aí”.

Fort., 30/10/2008

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 30/10/2008
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