BEDEL DO LICEU

Houve profissões que, ao sol de sua época, verdejaram, ficaram frondosas. Lindonas, à beça. E inundaram de ramos, flores, frutos e utilidades a ventania dos tempos.

Sem essa de figuração de linguagem, leitor amigo, será que você acha que ainda existe o ofício de faroleiro? E o de cavouqueiro, existirá? E o serviço de acendedor de lampiões da rua, de que nos fala o poeta Jorge de Lima?

Tais profissões, a muito custo, puderam viver trezentos, duzentos anos, um século, às vezes menos. Mas, afinal, por virarem trastes imprestáveis, tiveram que dar para trás. Ao contrário da ocupação de coveiro, “ad infinitum”, que, mesmo varando milênios e até agora ocupando carona no jato da evolução, continua a mesma rotina de sempre, e desde os primórdios da humanidade.

No meu tirocínio de liceísta menor, por exemplo, ainda existia o “bedel”. Era um agente subalterno que trabalhava na escola pública. Como a instrução encolheu, e a educação está-se diluindo em farinha, a figura do bedel também deixou de viger, como tal, pelo menos com esse nome démodé.

Apesar dos seus poderes disciplinadores e repressivos, à sua época, não considero de todo jocoso nem insípido este vocábulo: bedel. Até que soa bem, e rima com mel e fel.

Atualmente, onde ainda por ventura reste um só para meizinha, disfarçado, brando nos modos e cortês pelo salário que percebe, do antigo funcionário que levava e trazia o giz e o apagador, ou cuidava da disciplina externa, nos corredores da escola, a gente diz agora, muito suavemente: inspetor escolar.

Eufêmica, distinta designação. E aí, desmanchado(a) em ternura, homem ou mulher, a criatura de Deus se pavoneia, enche-se de brio, quando não passa a falar grosso, como autoridade. Agora, alguém se meta a besta, vá algum chamá-lo de bedel!... Ele (ou ela) fuma numa quenga, dana-se de espritado(a). Se for vigia, não aceita o desaforo; caso seja auxiliar de serviços gerais, aí sim, vira mesmo é bicho.

Um desses empregados simples, que o Estado hoje nivelou a “servidor público”, no genérico, ainda botava sentido nos passos e na danação da estudantada do Liceu do Ceará, em Fortaleza, lá pelas décadas de 60/70. Tímido e formal, eu não o tratava por bedel, pelo visto um epíteto antiquado. Mas a turma toda debochava. E, durante o recreio, ninguém botava água a pinto. Quando ele – o bedel, ou inspetor em começo de safra – dava as costas, ih!... A gritaria feia e bem-educada comia de esmola:

– Bedeeeel, bedeeeel!... Olha o bedeeel!

Minha Nossa!... O homem virava o cão, ficava de fulo a tiririca. Tipo ainda novo, de óculos no para-brisa, o rapaz metia-se sempre em camisa de punhos, muito engomada, com gravata no colarinho. Pimpão, pela pose, o camarada. Ser ele um bedel seria, por certo, o martírio de sua vida, pois não apreciava ser chamado desse jeito. Nunca se soube porque o gravatinha esnobe odiava tanto ser nominado assim.

Acharia ele em desuso a palavrinha bedel? Vai você aí saber!... Ou almejaria, talvez, formando-se por faculdade, ser algum tipo de “doutor”, posto que lhe fosse mais consentâneo com a sua pinta de sujeitão bem apessoado?

Assim como, nesta vida, é sonho de todo pé-rapado/classe média, mesmo que seja média abaixo da média, trepar-se na cumeeira da burguesia, também o ideal daquele iracundo, com a função que exercia, talvez até fosse ir um dia amornar o bem-bom do assento do diretor. Fort., 14/11/2008

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 15/11/2008
Reeditado em 15/11/2008
Código do texto: T1284154
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