Causos de Maricá (3)

A VIAGEM

Dos mais longínquos lugares, anualmente, partiam todos os parentes, contraparentes, agregados, conhecidos ou não, em viagem à barra de Maricá, região lacustre e de restingas no estado do Rio de Janeiro.

Embarcavam na precária estação rodoviária de Niterói em ônibus da Viação Nossa Senhora do Amparo, verdadeiro “cata-cornos”, única opção aquela época.

O destino inicial era a antiga Vila de Maricá, pràticamente uma rua que se resumia em pequeno comércio (lojinhas, vendas e etc.), antigas moradias geminadas (daquelas de simples porta e janela junto à calçada), inúmeras carroças puxadas “a burro” (onde se compravam os produtos agrícolas da região), além das crianças que vendiam doces, salgados e frutas. Era o “ point ”.

O desafio, em seguida, era correr e alcançar, na frente, o único jeep que esperava o ônibus para fazer o transporte pelas trilhas e picadas de longos trechos cobertos pela mata atlântica, até as margens da imensa lagoa de Maricá.

A aventura prosseguia, então, ao encararem uma canoa tipo indígena, feita de um tronco só, para, lentamente, deslizarem pelas águas quentes da lagoa, já, em parte assoreada, com alguns trechos tomados por algas esverdeadas.

Os adultos aproveitavam o tempo para tagarelar e fofocar, as crianças, contudo, alheias ao medo dos pais, corriam as mãos pelas águas, respingando a todos e gritando quando os peixes pulavam. Jogavam, ainda, biscoitos aos pássaros, principalmente as gaivotas que se aproximavam. Autênticos exploradores, verdadeiros “Indiana Jones”, de uma natureza inóspita, virgem, intacta, descobrindo seus segredos e mistérios.

O DESTINO

Ao desembarcar do outro lado da lagoa, já na grande restinga, ficavam frustrados, ao avistarem um aglomerado de cerca de dez casas de pau a pique, cobertas de sapê com paredes de sopapo, onde viviam de vinte a trinta pessoas , ascendentes de meu pai, por eles chamado de “Barão de Maricá”.

Era a barra de Maricá, à época de difícil acesso, estranha região de restinga a se perder de vista, com solo de areia fina, branquinha, que parecia neve, e manchada, aqui e acolá, por uma vegetação formada por pitangueiras, gravatás, dedo de moça (cujo látex ou leite, segundo os nativos, provocava cegueira) e outras, além de pequenas árvores cinzentas, retorcidas, com frutos amarelos, e inteiramente tomadas por cipós e parasitas, que apresentavam flores belíssimas.

Nem estradas, nem caminhos, enfim, nada, somente areia, e muito areia, um deserto de areia coberto com exemplares da vegetação típica de restinga, com algumas espécies da caatinga, sei lá!

Nesta paisagem, no lado das dunas, próximo a casa de Tia ANA, a chefe do clã e bisavó do meu pai, uma grande e única árvore se destacava, a chamada “centenária”, toda malhada em branco e cinza, com quantidade enorme de galhos, bem baixos, quase se arrastando na areia.

Era ali que a garotada brincava, por vezes no final da tarde, pulando de galho em galho, balançando-se, e tendo ao fundo, lá embaixo, a lagoa, a faixa de areia e o marzão.

A “CALDEIRADA DE PEIXE“

Ao chegar, já bem tarde, eram recebidos por um almoço “jantarado“, como falavam os nativos, pois, a noite, não havia jantar.

Bastante farto, era, o almoço, servido em uma espécie de galpão, coberto de sapê, todo circundado a meia altura, cerca de um metro, por uma mureta de alvenaria, tendo o piso cimentado.

No centro, um “mesão” onde eram colocados os pratos, talheres, copos, e acompanhamentos (legumes, hortaliças, frutas e etc.), não havendo cadeiras, mas sim grandes bancos, onde todos se acomodavam.

Os alimentos eram preparados na maior rusticidade, pois a única opção era um antigo fogão de lenha que tomava quase todo espaço da cozinha. Ao lado existia uma pequena cobertura que funcionava com uma espécie de depósito para todo tipo de madeira seca que pudesse servir para alimentar o fogo, como troncos, tocos, galhos, gravetos, etc., todos recolhidos na restinga.

Como não poderia deixar de ser, o prato principal era “caldeirada” de bagre ou de tainha, produtos da única atividade de subsistência, a pesca, aliás, bastante incipiente.

O bagre, tipo veludo, peixe sem escama, cor preta, com ferrões ditos venenosos, e a já famosa tainha de Maricá, peixe com escama, e de carne mais suave, eram pescados, ambos, na lagoa e no mar.

Alguns, como os mais jovens, gostavam mais do excelente pirão, feito com farinha de mesa, a água do cozimento dos peixes, sal e muitos temperos.

Até hoje, nunca comeram tanto peixe na vida e também, apesar do extremo cuidado, tantas espinhas.

A TEMÍVEL E ODIADA “SIESTA“

Os adultos, sem exceção, durante o almoço, se entupiam de comida, postas e postas de bagre, postas e postas de tainha, pirão a dar com pau, muita pimenta malagueta e... muita cachaça.

E no final, entupidos, balofos e encachaçados, só pensavam em dormir, curtir a carraspana, e, para ódio dos jovens, obrigava-os a fazer a temida “siesta”, como eles, nas esteiras que cobriam quase a metade do piso do galpão.

Eram dez a doze crianças, deitadas, aguardando os adultos dormirem para, em silêncio absoluto, pé á pé, bem levezinho, quase voando, andarem pelas esteiras até transpor as muretas do galpão.

No princípio foi difícil, devido o barulho das passadas, mas depois de aprenderem a pisar na esteira, seguindo o ritmo dos roncos dos adultos, facilmente alcançavam a liberdade e partiam, curiosos, a desbravar o território em caçadas memoráveis, até ao final da tarde.

A NOITE

A noite já havia caído e, como não havia luz elétrica, as lamparinas, à base de querosene, já estavam acesas com suas chamas bruxuleantes.

Banho tomado, roupa limpa e estômago forrado, após farto lanche, partiam para a escuridão, levando, cada um, um pacote de biscoito doce tipo maisena, marcas Maria ou Aymoré.

A caminhada era longa, estendendo-se pela faixa arenosa da restinga que ia da lagoa até a praia de mar alto.

No percurso, brincavam de chutar os pontos pretos que se destacavam na areia branquíssima. Eram sapos, centenas deles, que saíam de suas tocas durante a noite para caçar.

Além disso, ouviam muitos barulhos estranhos vindos da escuridão, o que, às vezes, os apavorava, mas, em geral, tratavam-se de carangos, gambás, corujas, e outros animais e pássaros de hábitos noturnos.

Na praia, o espetáculo era exuberante com a lua iluminando a imensidão do mar, as ondas em contínua arrebentação, e a espuma na areia.

Vez ou outra, grandes navios, intensamente iluminados, passavam vagarosamente na linha do horizonte em rumo desconhecido. Sonhavam, então, no futuro, viajar o mundo em busca de aventuras mais arrojadas.

O céu, como um tapete de veludo negro, rasgado pela “via láctea”, apresentava uma quantidade incrível de estrelas, das mais brilhantes, e também cortado, por vezes, por nuvens de meteoritos, chamados por alguns de estrelas “cadentes” ou “candentes.”

Ali ficavam apreciando a grandiosidade da natureza, tempos a fio, até chegar o cansaço...

Era hora, então, de voltar, pois, no dia seguinte, certamente partiriam...

EM NOVAS AVENTURAS

ViniciusSanches
Enviado por ViniciusSanches em 20/11/2008
Reeditado em 24/02/2023
Código do texto: T1293300
Classificação de conteúdo: seguro