ANTÔNIO GARAPA

Existem certos tipos populares que, mesmo que se lhes passe lixa grossa, por cima da nossa memória, para sempre eles insistem e persistem, e cá nos ficam agarrados na crina da lembrança. São figuras inesquecíveis do naipe do seu Chico Preá, do seu Manuel Pretinho e outros.

Outro camarada desta classificação, que eu diria do tipo folclórico, vem-me lá da primeira infância, quando ainda palmilhava, até uns dez anos, as águas do Camará. Este, o sítio serrano em que meu pai botava enormes adjuntos ou mutirões de agricultores, no serviço da lavoura e, com trato de gente de verdade, ele polia, no bem-bom, o pelo do seu burro de estimação, um de nome Caboclo Chato.

Caboclo Chato era um castanho manso, que morreu de velho, mas sempre gozou de privilégios e vivia solto no pasto, sem canga nem corda.

Agora, para nem tossir nem resmungar, vamos ao “outro camarada” do tipo popular ou folclórico. O apelido do sujeito que dá título a este “causo”, para agonia e desespero do infelicitado – senão olhem lá no topo –, era Antônio Garapa.

Nos eitos da roça, desde a broca do mato, seu Antônio comia da banda ruim. Os companheiros peões tiravam o homem a terreiro. Nunca alguém me explicou porque ele levava aquele depreciativo epíteto de “Garapa” no tabuleiro de sua graça.

A canalhice dos colegas de eito, vez por outra, comia de esmola no ar:

– Olha o Garaaaaaapa!!!

Urra!... Aí seu Antônio ficava fulo, “mordido da vida”, como se diz, até hoje, nestas glebas do Nordeste. Dava mesmo o pinote, virava bicho, mas não reagia à base da foice, da enxada nem do machado, que eram os seus utilitários usuais. Antônio Garapa fazia uso era de suas ferramentas vocais e os impropérios rachavam os horizontes do roçado: “– Eu só nasci Antônio, seus filhos de uma égua!”

Aos domingos, Antônio descia do seu poleiro, pois tinha casinha montada nuns degraus de cima, bem para as bandas do Alto, um trecho íngreme e elevado dos verdes do Camará. Seu Antônio Garapa, muito de roupa limpa, descia as escarpas do morro e vinha matar o bicho no fornecimento da casa-grande, ali onde outros parceiros já esperavam pela sua prosa.

Não mencionei, mas Antônio era bom de prosa. Não fosse o diacho do apelido arrevesado, sim senhor, até que o campônio não levaria vida pelo avesso. Mas, quando espirrava aquela alcunha safada... Viche, Maria!

Meu pai, lídimo herdeiro da famosa molecagem cearense, aproveitava os feriados e dias de guarda para, também, mexer com os brios do morador. Escreveu e não leu, passava a senha para os cabras do sítio. E falava, indireto, na maior cara-de-pau, para um certo Chico da Zefa: “– Ô Chico, água... açúcar...” Então, sem ser respeitado, também o Antônio Garapa manda brasa, bem na lata do velho:

– Mistura, aí, véeei fila duma éeeegua!!!

Aquela prosa sem violência alguma, só no deboche verbal, virava uma festa para os ouvidos, ainda moços, deste um, eu, que sou matuto por devoção de fé. Nunca gostei de apelidar ninguém, mas proseio assim, sem tiroteio nem facadas, sequer sem tabefe nas fuças de alguém, era bom demais e a gente nunca esquece. Até parece que aquilo foi ontem.

Fort., 24/11/2008.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 24/11/2008
Reeditado em 24/11/2008
Código do texto: T1301265
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.