Prego no tamanco

Eram três irmãs e se davam muito bem. Clara e Isabel, as mais velhas, já eram moças. Helena, a mais nova, uma adolescente, sempre cuidada e mimada pelas irmãs.

Clara e Isabel gostavam de dançar. Por isso, sempre que podiam, iam a bailes. Helena queria ir junto, mas o pai sentenciava:

- Tu é muito nova, guria, te aquieta.

As irmãs saiam e ela ficava no quarto, dançando sozinha, na frente do espelho.

Ao completar 14 anos, achou que já era mocinha e que o pai liberaria a ida aos bailes com as irmãs. Mas, mais uma vez, esbarrou naquela voz grossa e firme:

- Nada disso. Antes dos 15 não vai a baile nenhum.

As irmãs ficavam com pena, mas não ousavam desobedecer e nem contrariar.

Nas proximidades do aniversário do clube do bairro, tiveram uma idéia: o pai não queria que Helena fosse a bailes, mas poderia concordar que fosse à reunião dançante . Então, com todo o jeito possível conversaram com o pai. Depois de algumas fungadas, ele acabou deixando, com uma recomendação:

- A Lena não dança, só vai junto pra olhar.

- Claro, pai. Ela nem sabe dançar.

Saber, sabia. Até demais! O pai, claro, nem sonhava com isso. Mas o importante era ele ter permitido que ela fosse. O clube não era longe da casa delas, mas a filha da vizinha ofereceu carona, iam de Kombi.

Domingo, logo cedo, Helena tirou do armário o tamanco que queria usar e viu que estava um pouco descolado. Nem pensou em falar para mãe ou para as irmãs, porque era bem capaz delas acharem melhor que ela ficasse em casa. Ficou matutando. Se fosse com o tamanco daquele jeito, corria o risco de ficar descalça. Outro calçado ‘altinho’, não tinha. Então, solucionou por si mesma. Pegou um prego pequeno e martelou a tira de couro no pedaço de madeira, fez força, mas não conseguiu pregá-lo bem, um pedacinho ficava aparecendo. Não se deu por vencida. Escolheu uma saia mais longa e disfarçou.

Na hora da saída, novamente a recomendação paterna:

- Helena, tu não dança.

- Pode deixar, pai, vou só olhar.

As irmãs não ousavam desobedecer ao pai, por isso, quando chegaram, acharam um lugar para Helena sentar e ficar bebericando um refrigerante. Jogaram bingo, compraram rifa e quando a música começou, já tinham seus pares para dançar.

Helena ficou olhando, marcando o ritmo da música com os pés, invejando as irmãs. A música parou para o sorteio da rifa. Um prêmio, outro...:

- E atenção para o último prêmio: a torta! Número...58!

- Aqui! Eu ganhei.

Isabel era mesmo sortuda! Já havia sido rainha de uma Festa Junina e o rapaz mais cobiçado pelas moças estava dançando com ela.

A torta foi colocada com todo o cuidado dentro da Kombi. Seria levada para casa para ser degustada por todos, inclusive o vizinho que dera carona.

A reunião dançante prosseguiu. Clara e Isabel dançavam, Helena pensava como seria bom quando já tivesse 15 anos e o pai permitisse que ela também pudesse se divertir.

- Tu não dança, guria?

Era o vizinho que as tinha levado.

- Danço, sim senhor. Mas o pai não deixa.

- Ora, por que não?

- Não sei.

- Ah, deixa de bobagem. Ele não quer que você dance com qualquer um, mas eu te conheço desde criança, é como se fosse minha filha.

Diante de tal argumento, e muito mais empurrada pela vontade, Helena se levantou e foi dançar.

Clara e Isabel estavam rodopiando lá do outro lado e nem viram. Helena rodopiava e se sentia a criatura mais realizada do mundo. E foi na empolgação de uma rodopiada dessas que ela bateu em alguém. Pronto! Nesses bailecos sempre tem algum valentão. O sujeito deu um berro e puxou o revólver:

- Quem foi que me cortou?

Só então Helena viu o estrago que tinha feito na perna dele com a ponta do prego que havia colocado no tamanco. Gelou. Ficou lívida. Não se moveu. Nem respirava.

- Quero saber quem foi o filho da mãe que me cortou!

As irmãs vieram correndo e foram tirando Helena de perto, enquanto o tal sujeito ficava tentando descobrir quem o havia ferido a faca. A direção do clube acalmou os ânimos, solicitou que os seguranças fizessem uma revista e nenhuma faca foi encontrada. Mistério!

- Tá vendo, Leninha? O que tu tava fazendo lá, dançando com o seu João?

- Ah, achei que não tinha nada de mais.

- E se aquele sujeito puxa a arma e dá um tiro?

- Mas vocês também tavam dançando...

- É, mas do outro lado, longe.

- Helena! O que é isso? Tu tem sangue na saia.

Ela bem que tentou puxar o pé, mas não deu.

- O que é isso nesse tamanco?

Ai! O prego estava nu. Não tinha mais como esconder. Depois de uns petelecos e puxões de orelha, além do sermão (sermão de irmã mais velha é dose, de DUAS então...), as irmãs decidiram que ela não voltaria mais para dentro do clube. Mas o que fariam? Teriam que deixar os pares e ir embora. E dizer o que quando chegassem? E perder metade da reunião dançante? Nem pensar!

- Helena, tu vai ficar dentro da Kombi.

- Ah, não! De jeito nenhum.

- É isso ou voltar pra casa e contar pro pai que tu tava dançando.

- E contar o rebuliço do prego, também.

Ô vida! Melhor dentro da Kombi do que enfrentar a fúria do pai e ficar de castigo.

Assim, ficou lá, agüentando o calor e a música buzinando nos ouvidos, chamando para dançar.

Hoje, quando conta essa história, Helena ri muito da comédia que quase deu lugar a uma tragédia. E confessa:

- Comi toda a cobertura e o recheio da torta, não deixei nadica de nada. Matei minha vontade de dançar e ainda casei com o par cobiçado da minha irmã.

O ‘par cobiçado’, olha de soslaio, dá uma risadinha e se sente um galã.