Contando casos
 
Bem, agora é sua vez, ouvi alguém dizer. Então contei a seguinte história:
- Gente, eu li esta história que agora vou contar. É real. Uma história de amor e vingança. Não uma história de amor romântico, mas de amor fraterno. Uma história de sangue. Sangue herdado e compartilhado. Sangue derramado.
Estávamos fazendo uma faxina em nosso ambiente de trabalho. Renovando para um novo ano, um novo período. Eu como sempre, me perco nas letras. Enquanto elas limpam, seleciono jornais para jogar fora, recortes interessantes. Enquanto elas limpam, eu leio, pois afinal sou a chefe e chefe pode fazer o que quiser. É um jornal da cidade, do começo do ano passado. A foto chama minha atenção. É uma árvore cheia de galhos, mas com poucas folhas. A legenda diz que ela foi testemunha de um crime. O tal crime ocorreu no século XVIII. Faço as contas e duvido. Uma árvore com mais de dois séculos? Tenho que estimular a minha capacidade de crer para crer. Não pode ser a mesma, penso, mas se o jornal diz que é, então deve ser. Ela está lá, plantada firmemente na Fazenda Tira Couro, hoje São Bento Abade. Não longe daqui.
Eles eram muitos irmãos. Nove, embora eu só encontre o nome de sete. Onde estarão os outros dois? Mortos? Espalhados pela distância? Não se fala deles. Mas havia um que se chamava José e outro Joaquim. E havia ainda o Manuel, a Maria e o Salvador. E havia também o João e o Januário. Todos Garcia Leal, pois eram irmãos de pai e mãe. O pai, Pedro, era português dos Açores. A mãe, Josepha, de Cotia, São Paulo. E eles estavam ali, os irmãos. Seis em pé e um deitado. Morto, a espera de ao pó voltar. Esse era o João. Foi amarrado à árvore, a da foto. Amarrado e esfolado vivo. Até morrer. Seus gritos ouvidos pelos pássaros que partiram em desespero. Os bois e as vacas também se afastaram para bem longe.Os animais subterrâneos afundaram mais fundo ainda. Só os homens continuaram ali. Os homens e a árvore solitária que não pôde fugir. A árvore, adubada pelo sangue e pelas lágrimas do homem que agonizava. Talvez por isso a árvore ainda se mantenha viva, para que ninguém esqueça. Por que, perguntam vocês. Por que perguntaram enquanto eu lia. Não sei, o jornal não conta. Causas houve porque não existe fato sem causa. Nem sem conseqüência. Não sei a causa. Deve ter se perdido, levada pelo vento. Mas a conseqüência, essa eu sei e vou contar. Pois estavam ali os seis irmãos, junto ao corpo, prestes a enterrar um dos seus. Eu já enterrei dois irmãos, sei o que é isso.  Não sei o que é vingar, só aceitar. Mas entendo a vingança. Pois foi isso que ali jurou Januário. Vingança. Em frente aos irmãos, os vivos e o morto ele jurou matar os sete envolvidos no brutal e cruel crime. Jagunços e mandantes. Era preciso honrar o próprio nome próprio. Leal. Ele seria leal ao irmão e não pouparia esforços para vingar a sua morte.
E foi assim que a segunda vida de Januário Garcia Leal começou. Dia após dia, noite após noite ele percorreu caminhos e trilhas. E ele foi atrás dos sete. Atravessou as tristes montanhas de Minas até chegar aos pampas em busca de sua vingança. Um a um as mortes foram se sucedendo. E de cada morto ele retirava um troféu: uma orelha, que enfiava em um cordão de couro. Uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete. Sete orelhas.Januário Sete Orelhas. Assim passaram a chamá-lo. Um colar com as sete orelhas daqueles que causaram a morte do irmão. Terminada a vingança se deixou prender. E agora, pasmem! Foi julgado e absolvido. Saiu livre. Crime de honra. E se eu fosse jurada, podem crer, eu o absolveria também.
 
 
 
 
 
 
 (História verídica, faz parte do folclore lavrense, inspirada em uma reportagem do Jornal Lavras News de fevereiro de 2008)