HISTÓRIA DE ENCANTAMENTO

Dois espigões tremendamente agigantados, aqueles da minha terra. Dois montes colossais que se erguem, ainda hoje, majestosos e imponentes, em pleno seio verde da serra de Baturité, não demais distante da capital cearense.

Um desses altos picos, quando eu era apenas um tico de gente, afagou-o inumeráveis vezes o meu olhar, pois a travessia de quem se dirige do Camará, indo a descer encostas e ladeiras a caminho de Redenção, deixa transparecer, ao lado da frente, o Monte Mor, ou simplesmente Monte. Seu lado do avesso, com saliências elevadas de terras que lhe batem pelo meio, era onde fica o Palmeiras, o outro sítio que meu pai teve que vender para saldar dívidas de jogatina, mulherio e bebedeira.

O outro monte, de serra acima, só é visto se alguém vai para Guassi, lá de onde a visão do Besouro se torna privilegiada. Também, a exemplo do Monte Mor, pude apreciá-lo, porém mais à distância, indo e vindo constante à escola primária em companhia de outros meninos e garotas quase das mesmas idades.

Mais para além, portanto, longe da velha Serrinha, atualmente Guassi, dormita o Besouro; perto de nós, do Camará, como vizinhança íntima, o Monte Mor. Jamais, até que minha mente se relembre, nunca alpinista algum escalara as fantásticas alturas daquelas duas estupendas elevações naturais. Em pedra pura e lisa, e tão alto que é o Monte Mor, quem desejasse atingi-lo na ponta do olho, bem lá no seu ápice, teria que quebrar o pescoço.

Longe, bastante longe, quem suba em qualquer cabeço ordinário de morro, de lá verá para as bandas das planuras do sertão um terceiro pico, o qual se eleva até perto dos cirros, ali onde as crianças em geral veem carneirinhos de nuvens e cabeças de anciãos, com suas barbas muito brancas, barbas de Papai Noel. Esse novo pico, de que ainda não havia falado, espelhando brancura ao sol, é a Pedra Aguda. Só não sei em que jurisdição de município ela está montada.

Consoante o imaginário do povo de todo o maciço de Baturité e adjacências, a tríade soberba dos formidáveis relevos que acabamos de debuxar é que compõe a aquarela que pretendemos pôr a nu e levar a lume. Segundo o diz-que-me-diz popular, então, entre os três irmanados montes existe uma grossa corrente de ouro, a uni-los, subterraneamente.

E o povo afirma a existência desse encantamento, de modo peremptório. Todos afirmam e reafirmam o fato, e de pés juntos e mão na Bíblia. Sem dúvida que, por tal crendice, há mesmo essa tal tríplice corrente. Três elos de verdade, por debaixo do chão, como se cordões umbilicais. No vau das estradas, por conta da corrosão dos cascos de animais, a enorme corrente triangular já se encontraria gasta. O povo é sábio e sabe tudo da melhores potocas.

Tudo isso, meu povo, até aqui narrado, pode ser que seja verdadeiro; não duvido das arrumações da Natureza. Mas só fico meio cético e cabreiro porque os ianques, que gostam de pôr a mão no alheio, ainda não vieram desenterrar essa ourama toda para botá-la a tiracolo na Estátua da Liberdade.

Lá no topo da minha serra natal, sem fanfarra nem gabolice, qualquer curumim de peito repete para seus pais esse causo da enorme corrente de ouro que serve de liame, em formato triangular, entre os montes mais avultados da terra de Iracema.

Não inventei esta história. Trata-se de conversa escutada sobre um caso de encantamento. Se mentira for, passam um especial nas ventas de quem ma contou por diversas vezes, à hora noturna das histórias de alma, da mula-sem-cabeça, do lobisomem, do caapora (que a gente dizia caipora), do Saci-Pererê e de outras assombrações.

Fort., 05/03/2009.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 05/03/2009
Reeditado em 05/03/2009
Código do texto: T1469981
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