Mindim, o jumento

- Senhor José Gouveia?

- Sim sinhô! Seu criado, mas o sinhô pode me chamar de Zé do Pepe como todo mundo me conhece por essas bandas.

Zé do Pepe era o proprietário de uma gleba que nem ele próprio sabia quanto tinha de área ou valia. E nem se interessava por isto. Trabalhava nela desde menino e lhe coube como herança dos pais.

De uns tempos para cá já não tem mais necessidade tão grande de trabalho sol a sol, pois seus dois filhos e o genro exploram as terras e lhe repassam a terça de tudo que nela produz. Fica a maior parte do tempo fazendo coisas que deseja, a hora que deseja, matando o tempo pitando o inseparável cigarro de palha e, vez por outra, quase o dia todo tentando uma barganha nem sempre realizada a contento.

Não se exigia muito para levar uma vidinha tranquila naquela região e naqueles tempos. Não se tinham despesas com energia elétrica, telefone, carro, gasolina e tampouco gastos com a educação dos filhos fora de casa. Comprar comida, muito pouco, quase tudo se produzia ali; roupa nova somente duas vezes por ano: uma após as colheitas do verão, do dinheiro vindo das sobras da produção vendidas e no dia do aniversário de algum deles. Sapatos? Raramente usados, duravam uma eternidade. Se os pés estragavam num prego, topada num toco ou cortava no caco de vidro a natureza consertava de graça. Sempre foi assim.

No mais eram sempre as mesmas rotinas com a vestimenta. Sujava, lavava; sujava, lavava; rasgava, remendava... Até haver necessidade de uma outra, pois já não se tinha mais lugar na camisa original para pregar remendos. Tudo muito simples e sem queixas, conformados com a rotina das várias gerações.

Sô Pepe tinha uma fonte extra e lhe rendia uns merréis. Era oriunda da atividade do Mindim, jumentinho merreca, pequenininho, feio pra dedéu, mas um tiro certeiro no cruzamento com as éguas da região. Se a princesa estivesse capaz, era uma só e burrinho estaria nascendo daí uns tempos. Nunca falhava.

Morava numa casa antiga de fazenda, de dois andares, sendo o inferior para guardar tudo e uma escada retilínea de peroba elevava ao pavimento superior. Em baixo, para proteger a parte que tocava o terreno, havia dois ou três degraus de pedra e era o lugar predileto do Sô Pepe sentar e curtir o seu fedido cigarro de palha. Para o gado não bostear perto da casa tinha ali um cercado de réguas e assim o terreiro sempre estava varridinho, limpo.

O diálogo continuou ainda de longe:

- A sua graça, qualé?

- José Inácio, mas o senhor também pode me chamar de Zé!

- Então sô Zé. Se o sinhô trouxe a eguinha pra cruzar, pode tomar o trilho que passa debaixo do pé de coité e ruma pro curral logo ali na frente. Lá o Francisquim sabe tudinho como fazer e se precisar ajuda; guiar o Mindim; essas coisas... Ele sabe tudo. Mindim às veiz fica nervoso e custa acertar, sabe? Mas ieu preciso alertar o sinhô: se a eguinha tiver no dia apropriado, o sinhô disapeia inhante porque o Mindim vai com tudo pra cima dela. Trepa com o sinhô em cima e tudo e – Deus me livre e guarde, Santo Pai! – Se ele errar a pontaria o sinhô vai tá fritinho. Lasca o sinhô em duas banda na hora! Hehe!

O Sô Pepê era muito brincalhão, todos já sabiam disto e até o apreciavam pelo espírito alegre e despreocupado.

- Não senhor! Eu só queria tirar uma prosa com o senhor, se não for causar nenhum estorvo.

- Estrova nada não sinhô. Marra a franguinha aí e se achega!

Troca de cumprimentos. O Zé sentou-se na pedra da escada ao lado direito do seu Sô Pepe.

- Leva mal não, sô Zé, mas passa pro lado de cá. Eu tenho a mania de fumar e cuspir muito e o meu pescoço já vira pra esse lado quase sem eu mandar. Nem penso e cuspo pra direita. Se ficá aí eu vou acertar o sinhô na primeira. Hehe!

- Sô Pepe! Eu vim aqui para propor um negócio pro senhor. Eu queria comprar o Mindim, porque eu to pensando criar bastante burro e mula na minha fazenda. Vejo isso como um bom negócio daqui pra mais uns tempos.

- Comprar Mindim? Disse depois de ter lançado uma cusparada tão abundante que levantou até poeira da terra seca. Vendo não sinhô! Sabe? Ele me dá um lucrim e também já até faz parte da família da gente, no bom sentido; o sinhô intende. Aqui não tem nenhum parente de sangue dele não sinhô.

- Pede besteira, Sô Pepe! Pede besteira grande, homem!

- Tá certo. Quero dois mil conto!

Isto aí correspondia mais ou menos a dez vezes mais o valor do animal, mas o Zé sabia que logo, logo ele teria de volta o dinheiro investido, dado as qualidades e a fama do jegue. E para impressionar o Sô Pepe, resolveu fazer uma contraproposta alta e comprar à vista, pagar na hora:

- Dou seiscentos no pau!(*)

Sô Pepe parou de rabiscar o chão com uma varinha de guaxima, retirou o lambido cigarro da boca, lascou outra vigorosa cusparada e depois se ajeitou pro lado esquerdo de modo a encarar o Zé olho no olho:

- Sô Zé! Se a gente tabular e fechar negócio do Mindim vai ser com o animal compreto. Pedaço de jumento ieu num vendo! Pro mal lhe pregunto: cumo é que o sinhô vai se arranjar com o pau sem o jumento? E ieu? De que vai me valer um jumento sem o pau? Me discurpe! Vendo pedaço não sinhô!

(*) No dinheiro; pagamento à vista.

Dbadini
Enviado por Dbadini em 17/04/2009
Reeditado em 18/04/2009
Código do texto: T1544790