A DÔRA DO TENÓRIO

Nunca vi, até hoje, uma cristã – mas cristã mesmo, à semelhança de Deus – para apreciar tanto levar surra, nos lombos, como a Dôra do Tenório.

A tipa, na verdade, apanhava era por prazer. Algo sintomático. Seria algum vestígio de masoquismo embutido? João, o marido malhador da desditada mulher, ainda tentava aguentar a mão, protelava o seu baixar de couro, mas era mesmo que nada.

Ele terminava entrando em funções de carrasco e não havia outro remédio. As xingações de dona Dôra eram um prato cheio – assim, ‘de calculo’ – para o usual e diário molho de peia na indigitada infeliz.

Pensam vocês que estou, aqui, tomando as dores do João? De jeito nenhum. Até que, se naquele tempo já existe a Lei Maria da Penha, com certeza, eu mesmo pediria a qualquer juiz de família que lhe aplicasse o rigor da lei.

Mas é que dona Dôra não comia a broa da hora do almoço de seu marido com o mínimo de ética. Também não se dava por rogada, nem calava o bico. Era um desassossego de mexer com os neurônios de um frade de pedra.

Dora e João formavam um par de moradores de um sitiante de bons haveres, este um sendo contraparente de minha mãe. O zé-povinho, todo mundo ali do lugar, manjava aquele desmantelo na casinha de sapé dos dois.

Dos dois, não. Dos dois, vírgula!... E a récua enorme da filharada? E, pois, com tantos cus-de-boi no lar desse casal, aquilo para a ralé da Serra era um lavar de línguas que era um despotismo.

A mulher do Tenório era uma dessas espécies de cascavel que a gente cria em casa. Contudo, isto só se dava até que ela tomasse o seu quotidiano chazinho de surra. E mais: sempre à hora do almoço. À noite, ah!... Dôra era fã de cama, digo, de rede. Era fã de um bem-bom, que só ela mesma.

Depois do ai, ai, ai, não. Quando Dôra servia o rango do maridão, aí ela virava uma seda, uma santa cabocla. João podia dispor dela, como desejasse. Ora se podia! E assim do melhor jeito, de cama e mesa.

Os filhos de Candinha atestavam que Dôra, logo de chapa, para moer a paciência do peão, quando este arriava a enxada num canto, aí ela já armava xingação assim, da qual João nunca foi partidário: “– Hoje tem de comer não, seu fio de uma éeeeeegua!”

Mas tendo, sim, sempre havia alguma sobra; miséria pouca, mas sempre tinha algo no fogo. Porque na Serra, em tempos do arco-da-velha, até mesa de pobre era tiro e queda.

Com a xingação, aí o tempo se fechava. O maridão de Dôra sacava do cinturão e cosia a pobre toda de peia, o que, lá distante, em Portugal, Manuel e Joaquim chamam de ‘tareia’. Ai, ai, ai, ai, etc., e o almoço vinha à mesinha tosca, de manso, na boa, em seguida.

Havia quem afirmasse, com os dedos em cruz, que era daí, após a sessão de bordoadas e lapadas, que dona Dôra botava almoço na mesinha tosca, depois sentava na redinha armada na saleta e cantarolava às pampas. Voz boniiiiiiita, a de dona Dôra!

Só o que não se sabe, com exatidão, é se no repertório da mulherzinha saía aquela tão famosa e machista música de Mário Lago e Ataulfo Alves, a famigerada “Amélia”. Ah, isto eu também não sei.

Fort., 27/05/2009.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 27/05/2009
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