BILÚ

Bilú procurou escutar atentamente e aguçou os ouvidos. Escutou nitidamente a voz do pai que o chamava:

- “Bilú... Bilú”

Mais que depressa desarmou a arapuca, esqueceu-se do sabiá de peito amarelo que estava nos galhos do pé de araçá e saiu em louca disparada. Gostava de caçar passarinhos, mas quando o pai o chamava era “pernas prá que te quero”. Saía em desabalada carreira, atravessando campos, morros e riachos e só parava quando avistava a sua casinha entre os viçosos mamoeiros carregados de frutos, humilde com aquela réstia fumaça a bailar na chaminé, prenunciando o jantar e o pai à porta. Em pé.

- “Por onde andava, Bilú?”

E o menino, cabeça baixa, mãozinhas sujas nos bolsos da velha calça curta remendada, sussurrava:

- “Eu... eu tava lá no grotão, pai. Fui caçar sabiá do peito amarelo.”

O pai se sentava na solteira da porta.

- “Vai se lavá... A mãe já vai por a janta na mesa.”

***

Por muito tempo eram assim suas tardes.

Pela manhã, logo ao clarear o dia, o pai o chamava e se levantava ao primeiro “acorda”. Saía de casa, ainda quase dormindo e ia para o riacho que corria molemente frente à casa. Debruçava-se junto a taboa de lavar roupas e mergulhava as mãozinhas magras, de dedos longos, na água gelada da natureza. Lavava o rosto, molhava os cabelos rebeldes e mau cortados e se espreguiçava. O cheiro bom do café coado chegava a seu nariz.

Depois de comido o pão e bebido toda a caneca de café, saía com o pai, enxada ao ombro pequeno, chapéu de palha desfiado enfiado na cabeça e o milharal que os esperava.

Escola? Bilú nunca ouvira falar. Nunca vira a mãe ou o pai ler qualquer coisa em casa ou fora dela. Ia à cidade apenas uma vez por semana. Aos domingos, para a missa matinal. Depois, voltava para a casa e... seus dias eram sempre iguais.

A mãe, coitada, sempre calada, conformada com a vidinha monótona e simples que vivia. À noite, antes de dormir, acariciava a cabeça de Bilú e naquele toque de mãos ásperas, o menino sentia toda a ternura que inunda o coração das mães. E sentia-se forte, seguro, sem medos e protegido contra todos os males.

***

Uma noite acordou assustado.

Enquanto a natureza brigava lá fora, relâmpagos e trovões se agredindo e o céu chorando lágrimas de chuva, lá dentro, no quarto pegado ao seu, sua mãe chorava e seu pai gritava.

E ficava horas escutando as brigas... depois, assustado, cobria a cabeça com o cobertor gasto e já quase transparente pelo uso constante. Por várias vezes, ouvira a mãe dizer entre lágrimas e trêmula de medo, que o marido tinha outra mulher em sua vida. Ele revidava... ameaçava... negava. Mas ela insistia. Tinha certeza que havia outra.

- “Não precisa chorar, mãe... Eu vou crescer e nós vamos embora desse lugar. Eu vou cuidar de você e nunca mais você vai chorar.” – dizia Bilú, quando estava sozinho com a mãe.

E com o coraçãozinho repleto de esperança, repleto de ansiedade em poder dar à mãe, um dia, toda a felicidade merecida, os meses se passaram. Um dia, ela não se levantou da cama. O pai foi à cidade e veio com o doutor. Ele aguardava na cozinha, observando o fogo crepitar no velho fogão de lenha. A porta do quarto se abriu e o médico saiu lentamente. O pai veio logo atrás e tinha os olhos vermelhos e opacos.

Sentiu morrer dentro de seu coraçãozinho arfante toda a esperança de sair com sua mãe daquele lugar ermo e esquecido no mundo. Percebeu, dentro de toda sua inocência, que ela o havia deixado... e para nunca mais voltar. Sem saber o porquê, teve medo. Um medo crescente, que não sabia explicar, mas que o sufocava agora, como se o quisesse matar. E só adivinhou o porquê desse medo, quinze dias depois do enterro de sua mãe.

- “Bilú, esta é Francisca. A gente se conhece de muito tempo e a gente se gosta. Além disso, você precisa de uma mãe para cuidar de você... e de mim também. De hoje em diante, ela vai morar aqui, com a gente. Esta vai ser a sua casa... E você vai obedecer a sua nova mãe, como sempre me obedeceu. Senão já sabe...”

Bilú ouviu atentamente o pai. Quando ele se calou, foi que conseguiu levantar o rostinho moreno e fitar a mulher que se encontrava parada na porta. Ela sorria molemente com aquela boca vermelha de batom e ele sentiu seu estômago revirar ao deixar entrar por suas narinas aquele cheiro de perfume forte e barato. Sua mãe não era assim... não tinha aquela boca grande e vermelha. Nem aqueles olhos que pareciam odiar... e muito menos aquele perfume. Um cheiro gozado... de coisa suja, de bebida e de suor.

- “Então, Bilú?... Gostou de sua nova mãe?” – disse o pai, abraçando aquela mulher pela cintura e ela aconchegando nele sua cabeça, com um riso maroto.

- “Ela não é minha mãe! Eu não tenho mãe!” – respondeu Bilú friamente.

Seu rosto queimou quando a mão grande e calosa, espalmada desceu fortemente num tapa cheio de rancor.

***

Daquele dia em diante, sempre a mesma coisa. Se desobedecesse aquela mulher, em qualquer coisa que fosse, ela contava ao pai e este castigava Bilú sem piedade. Então, para se ver livre das surras, o menino procurava aceitar tudo... calado... medroso... e assim, foi definhando. Bilú já não era mais o mesmo menino. Emagrecia à olhos vistos e seu olhar era vago... triste... distante. Era como se esperasse por um milagre. Por alguém que o viesse tirar daquele pesadelo.

- “Biluzinho... Cadê o balde de água para o meu escaldapé, meu querido?” – pedia a mulher, como sempre parecendo vestida para uma festa profana. – “Vamos, anda... Vá buscar a água quente e despeje na bacia... Estou com os pés tão cansados!”

E o menino saía lento, como um autômato, em direção a velha cozinha, onde a água borbulhava no caldeirão preto sobre o fogão de lenha. E quando à noitinha, o pai chegava da roça, perguntava pelo menino, caso não o visse por perto.

- “Deve de tá caçando passarinho... só presta prá isso!” – respondia a mulher, sempre de mau humor.

O pai então saía à porta e chamava:

-“ Bilú... Bilú...”

E ele vinha correndo, esbaforido, logo ao primeiro chamado paterno. Mas ao chegar em casa, quedava-se triste num canto, acocorado junto ao fogão de lenha. Não era sua mãe a preparar a janta quentinha e saborosa e sim aquela desconhecida, que sentada à mesa tosca, pintava suas unhas em vermelho profundo.

A noite, quando se deitavam, o pai dizia para a mulher:

- “Coitadinho do Bilú... Tá tão diferente do menino de antes. Será que você não poderia ser um pouco mais amorosa prá ele?”

E ela, dengosa, desfazendo-se em amores:

- “Eu nunca grito com ele... Trato seu filho como se fosse meu mesmo. Ele é que é uma peste... Nunca me obedece em nada!”

E depois do beijo molhado, ele acreditava piamente em tudo o que aquela mulher falava. E esquecia-se do filho, na cama quente de amor e de mentiras.

***

Uma tarde, ela chamou pelo menino. Chamou por diversas vezes, porém, sem resposta. E quando isso acontecia, andava de um lado para outro, nervosa, gesticulando, ameaçando. Ele, em toda sua inocência infantil, entrava correndo casa à dentro e de posse de sua velha arapuca, saía esbaforido para caçar seu sabiá do peito amarelo. Ela corria atrás dele... gritava... esbravejava.

Naquela tarde, conseguiu agarrá-lo pela camisa rasgada e de posse de um pedaço de lenha que aguardava para ser consumido no velho fogão, o surrou. Bilú caiu logo ao segundo golpe. Ela continuou batendo... batendo... cega de ódio daquele menino endiabrado. Os gritos de Bilú foram se calando... O pedaço de lenha descendo sobre suas costas, cabeça, pernas e ombros. O rostinho moreno molhado de lágrimas quentes... a respiração entrecortada... difícil.

Cansada, ela deixou-se cair numa cadeira, arfante. Não percebeu o menino que saiu se arrastando... machucado... maltratado. Quando saiu para o quintal, criou forças e correu... correu para a mata densa que separava a casinha humilde do campo verdejante sem fim.

Cansado, deixou-se cair sobre a relva úmida pelo orvalho que a tarde trazia, como névoa benigna de um céu estrelado. As dores cessaram e Bilú levantou lentamente a cabeça.

Vagalumes, aos milhares, brilharam à sua frente. E a luz de cada um deles, se tranformavam agora em estrelas, como se elas tivessem caído do céu... ou como se ele para lá tivesse subido.

E erguendo ainda mais a cabecinha, viu que ainda mais aumentavam os vagalumes, brilhantes, voando... voando...

E ouviu, distintamente, muito longe, a voz do pai que o chamava:

- “Bilú... Bilú...”

Imaginou o pai em pé, à porta da casinha humilde, chamando, enquanto uma réstea de fumaça dançava na chaminé da cozinha.

- “Bilú... Bilú...”

O chamado foi ficando cada vez mais longe... mais distante... até sumir de vez na amplidão daqueles campos e grotões. E Bilú, sorridente, sentindo-se leve como um daqueles vagalumes, percebia-se desprender do corpinho cansado, cheio de hematomas pelas pancadas, e subir... Subir ao encontro da almejada felicidade e paz!

FIM

Dia 22 de Agosto - Dia do Escritor Louveirense

Ademir Tasso
Enviado por Ademir Tasso em 30/05/2009
Código do texto: T1622617
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