O LIMPADOR DE SALÃO

Era um burocrata convicto. Com todas as letras, ele virara um burocrata. Nunca o imaginara daquele jeito, à época em que, juntos, amassávamos os bancos do Liceu. Burocrata e pelego sindical: assim é que melhor eu o definiria, agora, após tantos natais. Durante anos a fio, o meu controverso ex-colega foi empregado de um grande sindicato, o qual dele fazia gato-sapato.

Quando havia uma querela judicial, na Delegacia do Trabalho, ou que fosse em qualquer instância advocatícia ou ligada à Justiça, por exemplo, no Tribunal, lá se ia o M..., de pasta zero 7 à mão, portando os papéis da pendenga de um ou outro trabalhador demissionário.

Por favor, amigos, bruscamente mesmo, neste ínterim, suspendam as atenções ao meu personagem M... Antes que volte a tratar do tal burrico de carga sindical, atentem bem para esta expressão, assim meio gíria, assim mais idiomática: “limpar o salão”. Se na sua região, aí distante, a dita-cuja não for conhecida, não se avexem ainda, não. Vou-lhes explicar, a jeito, a tal nojenta expressão.

Sem querer ensinar padre-nosso a sacerdote, “limpar o salão”, em linguagem popular e figurada – que me desculpem os maus-modos no informar – quer dizer escavacar o nariz. Ou, por outras palavras, caso desejem que eu seja mais explícito, quer significar tirar meleca ou catota das ventas, aí lhes enfiando o dedão e remexendo para lá e para cá. Eca!... Isto é nojento mesmo, e há poucos dias trouxe, à baila, outro caso chato de um comedor de baratas.

Bem, já que vocês agora dominam bem o que é “limpar o salão”, eu retorno a falar do M... Quero dizer, do limpador de salão. Pois o M..., ao meu entendimento, e pelo que dele sei, foi o maior limpador de salão que tive o desprazer de ver na face deste orbe terreal. Pior ainda, como deixei claro lá em cima, o sujeito foi meu colega de bancos escolares. Mas as razões que o fazem, aqui, de minha cobaia, tornando-se ele um herói popular, só vieram bem depois.

Para lhe fazer justiça, quando cursava o Clássico, sendo ele meu parceiro no 2º Grau, o M... ainda não havia contraído a desgraceira da mania acima descrita. Na rolança dos tempos, quem sabe pelo estresse que o cara engolia no mega sindicato, ele virou os chifres pelo avesso e ficou porco sem que a parentalha o soubesse. Eca!...

Alguns anos correm... Perco eu o moço de vista, embora sabendo da existência dele, como funcionário, lá nas lides do tal mega sindicato. M..., invariavelmente, pelo que soube depois da boca do próprio, todo santo dia, estava ali, pelas dezesseis da tarde, lá onde fazia ponto na Praça do Ferreira, bem no coração de Fortaleza.

Às vezes, quando ia tomar um arzinho puro e espairecer carcaça e cabeça, naquele histórico e romântico logradouro urbano, eu dava de pontas com o nosso burrico sindical, hoje muito mais folclórico que o Zepelim. E, de olho no ar, eu via o antigo colega de Liceu, sempre no epicentro de uma roda de conversa. Mas para quê, se de lá ele me enxergava!... Quando o gajo me notava a presença, naquele aprazível sítio da praça, largava a sua roda de papo e lá se vinha cair no meu pé. Era adesivo. Pegajoso mesmo.

Conversa vai, conversa vem, e o bobo indicador de M... era metido nariz a dentro, óbvio, nariz lá dele. Certamente que o sestro era anti-higiênico. Isto me era incômodo, mas o causo não era apenas esta nojeira. O rapaz falava dos estudos, divinizava o vestibular. Reticente, não se definia nunca por uma faculdade tal. E oitocentas vezes me pedia opinião sobre que tal ou qual faculdade deveria cursar, etc., etc., coisa e tal. Um porre eram aquelas sessões de lengalengas. Em resumo, tudo convergia para a toada igual. Um cri-cri-cri dos diabos.

Fingindo alguma paciência, dizia-lhe que ele e somente ele é que deveria optar, que buscasse tomar partido por alguma formatura superior, em particular, à luz de suas próprias pendências e inclinações. Besteira minha, que o meu interlocutor me vomitava, de quebra, ainda mais oitocentas perguntas, tirando som na mesma tecla, sempre a me calcar o ombro, a cada investida. Paralelo ao bombardeio de interrogatórios, vez em quando, o dedinho de M... emigrava à caverna do nasal. Eca!... E me chovia em cima mais um infindo bloco de questões sobre que vestibular elezinho deveria fazer.

Por sorte minha, e dele também, sobretudo, lá um dia, quando o encontrei no mesmo largo do Ferreira, M... estava menos mexilhão com as melecas, que o povinho, no Nordeste, também chama de ‘catotas’. E aí me confessou, entre dentes, que havia frequentado a Cultura Germânica; e que tinha ganho por méritos bolsa de estudo para ir à pátria de Karl Marx, a fim de aperfeiçoar o seu idioma adotivo, que, por sinal, fora o mesmo adotado por Adolf Hitler.

Fort., 16/06/2009.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 16/06/2009
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