João Ninguém da Silva e a história do barro santo.

Se céu da boca não tem estrela... Se manga de camisa não tem sabor

Se a asa da xícara não avoa... Faz favor de escutar o contador...

Sou João Ninguém da Silva... Quem em sua mente mora

Sou João NInguém da Silva... O contador de história.

Eu conto cá, eu conto lá, - Conto aqui, conto acolá

Vou contando, recontanto, - Até você não aguentar...

Puxe daqui coisa ruim, saia fora boca de fole, sovaco fedorento, rala a bunda no cimento pra ganhar conto e quinhentos... Esse menino, você aí boca banguela que me olha todo arregalado, me responda de uma vez, por onde foi mesmo que você pisou heim? Qual foi a areia fofa que fincou sua marca? Sim, porque eu só posso ter pisado em rastro de corno mesmo! Corno cururu, corno cuscuz, corno que se faz de cego pra melhor passar, ou será que praguejei o padroeiro, ou será que belisquei minha mãe na passagem do parto porque não queria nascer?

Só podem ter sido umas dessas coisas... Só podem ter sido...

Escute só... Quando ia saindo de casa, abrindo a porta, dei logo de cara com um boi chifrudo, bem chifrudo mesmo, chega envergava de tanto peso, de relâmpago logo pensei: tarei me olhando no espelho? Quando vi o tamanho das pontas, logo pensei: não, não pode ser, desconfiar assim de minha senhora, não é certo. Quando por desgraça, o meu compadre bicheiro olha pra mim desconfiado e diz: "Pense muito não homem, amanhecer, abrir a porta e dá de cara com um bicho de chifre, é má sorte na hora". Olhei assim para ele, quis dizer alguma coisa, não disse, me contive, me calei, mas não pude conter meus pensamentos e pensei: quem muito olha pra vida dos outros, acaba esquecendo da sua. Não tinha virado a inda a lua do dia que a senhora dele arrumou os panos de bunda e se atirou mundo a fora nos braços de um magricela cortador de lenha...Aí disse, bom dia pro senhor também compadre. Algum palpite pra hoje? Se fez de mouco e partiu. Pois o danado do bicho de chifre nera ele, homem...

Tirei meu pente do bolso, penteei meu bigode, meu cabelo, passei melhor o pano da camisa por dentro, tirei meu vidrinho de cheiro do bolso da camisa listrada cor sim, cor não, me lambuzei todinho de um cheirinho agradável, dobrei a calça uns dois palmos, botei meus óculos escuros comprados na venda do compadre Mané Trote, amuntei na minha bicicleta de buzina e parti.

Pra minha desgraça, tinha esquecido da chuva da noite passada, pense num aperreio, num atoleiro desgraçado. Cada pedalada era uma ciscada de lama nas costas. Quando não a corrente da bicicleta que caia... E as poças de lama? Pareciam açudes de tão cheias. Mas como era o jeito, segui viagem feliz da vida, tinha que trabalhar, ganhar o pão do dia. Uma ruma de boca pra alimentar. Né essa a diversão do pobre, brincar de gangorra com a veia e botar filho no mundo e achando pouco o trabalho ainda criar os filhos dos filhos, as mulheres dos filhos e os maridos das filhas também, pense da vida medonha.

Como que não bastasse, um filho do mal agouro me para no meio do caminho, a boca toda arreganhada em pranto e me pede uma carona até mais adiante, tava com dor de dente e não conseguia andar a pé. Olhei aquela estatura de boi de arroba, os olhos cheios de remela, a baba caindo pelo canto da boca, a braguilha da calça ainda aberta e a banha sobrado de cima a baixo na camisa... O sangue me ferveu por dentro, mas fazer o quê? O condenado era meu afilhado e já pensou se me roga uma praga? Dizem que praga de afilhado é condenação atá a última geração... E se a praga for do tamanho dele? Quantas gerações minhas seriam amaldiçoadas? O que não pode ser remediado, remediado está... O infeliz pesava pra quase uma arroba. Quando amuntou na garupa da bicicleta foi preciso mais dois curiosos que rondavam ali por perto darem um empurrãozinho pra poder eu conseguir sair do lugar. Desenhe aí a cena nas vossas mentes, parecia que tava costurando a estrada. A sorte minha foi que peguei uma descida, quer dizer, sorte por assim dizer, tinha esquecido que o freio tava desregulado. Na primeira poça de lama, não teve jeito, foi lá mesmo, quando vi que não, já estava lá os dois mergulhados. Água quase que nos joelhos. A roupinha limpa lavada pelas mãos da minha amada e disposta velha, enxaguada com anil, já era, de branca, a calça, ninguém mais sabia dizer qual era a cor daquela obra de arte. E pra levantar aquela derrota sozinho, pense do aperreio. Quando puxava prum lado, o condenado virava pro outro; quando se lembrava do dente doendo, largava minha mão e levava a mão ao queixo. Foi pra mais de uma hora de peleja com exagero e tudo. Pra minha sorte foi que passou uma carroça de boi e o pobre do carroceiro, um sopro de vento de tão magro que era, magro, mas de força que eu nunca tinha visto dantes em mais de meio século de vida, me ajudou a por de pé aquele filho da sorte esquecida.

E a bicicleta, a roda ficou tão amassada, tão empenada que não dava mais nenhuma rodada. Joguei lá em cima da carroça e até pensei numa carona, mas como fazer aquele arrojo de carne humana subir na carroça? O jeito foi mandar a bicicleta e vir a pé fazendo as venhas praquela roladeira humana.

Mais adiante outro atropelo. Barro, barro vermelho, daqueles que grudam e você sem sentir vai atolando. Só tinha uma pinguela pra gente atravessar, pense. Uma pinguela feita do tronco de uma carnaúba... O desgraçado deu um passo, deus dois, deu três, mas no quarto, o passo quem deu nele. Foi parar barrou abaixo. Valei-me nossa senhora da Boa Sorte.

Eu só queria ter uma máquina de bater chapa numa hora dessas pra tomar nota do atropelo. Pense numa bolacha preta achatada na chapa pronta pra ir ao forno. Um ovo estralado na frigideira de ferro quente, um tomate maduro esmagado... Era muito pior, era pior muito. Sem querer ser grosseiro, cabido ou desavergonhado e sendo, um amontoado de estrume de vaca produzido na hora, pronto, já pode imaginar, né não? E eu que não quis dar ouvidos ao meu compadre chifrudo. Era barro nos olhos, era barro na boca, era barro nos ouvidos, era barro cobrindo o corpo do desafortunado por inteiro.

Quando penso que não, pela luz que me alumia a visão, pela alma inocente de todos os anjos que já encomendei na vida e devolvi ao céus, um berro de desespero advindo não sei de onde, se de cima do céu o se do interior de dentro da terra, pôs o cabra da peste de pé?! Um estrondo de grito advindo não sei de onde dizendo que aquele barro era santo, que aquela bolota de carne humana tinha sido agraciado e pel opeso da queda havia encontrado ajuda divina.Nesse momento o barro muda de cor, abre-se ua ponte entre a terra e o céu, ua legião de anjos a tocar sanfona, zabumba e triângulo e vários outros assitentes a dançarem xaxado nas núvens... Eu bem vi com esses olhos que a terra há de comer, pode crer que não sou homem de invensão nem tão pouco de contar pabulagem... Dou fé do que etou dizendo...

Em poucos instante, sem precisar de ajuda, o lapa de banha se pôs de pé, gritou que tinha passado a dor de dente, que já se sentia mais leve e em poucos minutos uma multidão de curiosos, todos a disputarem palmo, palmo e meio, meio palmo, um punhado, um punhadinho do barro santo... Foi uma confusão dos seiscentos diabos que não quis ficar pra ver o fim da história. Só sei que construíram casa de taipa com o barro, imagens de santos,, alguns diziam ser nossa senhora do Barro Santo e outros diziam ser Santo Barro Santo... Colocaram o barro dentro de garrafas para serem vendidas como mostra do barro milagroso; criaram até a peregrinação de nossa Senhora do Barro Santo de um lado e a romaria do Santo Barrro Santo do outro. Pouco tempo ergueram uma capela, dus capelas, a casa de promessa, nossa, é tanta coisa que só vendo pra crer...

O sortudo do meu afilhado ficou sendo conhecido como o que lapa de milagre e até hoje ganha alguns tostões contado essa história, inventando é certo um cadinho aqui, outro cadinho ali para os romeiros que vêm dos quatro cantos se lambuzar do barro santo a procura de uma graça.

E eu? Perdi a bicicleta, fiquei no prejuízo, o barro santo nunca mudou em nada minha vida e o único trabalho que arranjei no dia foi esse, contador de histórias de feira livre... Daqui a pouco é chegada a lua e o querosene da lamparina, como vou comprar se não conseguir arrastar nenhum tostão com minhas palavras? Quem vai querer escutar, quem vai...