Pesadelo ou invenção? Mas uma conversa de comadre...

Do jeito que estou aqui, tenho certeza que não chego no próximo dezembro. Tou dizendo, tou dizendo e ninguém acredita. Ainda bem que todos os filhos já estão criados e criando suas crias, as crias de suas crias e assim vão pela sorte de Deus. Só pela sorte de Deus é que se consegue ir tão longe.

É, só eu sei o que sinto, só eu sei o que se passa comigo. Ontem, inventei de pegar numa água, para mim tava morna, mas eu acho mesmo, agora, que tava era quente, quente só não, tava era pegando fogo. Se eu tivesse tido a ideia de ter colocado um ovinho de codorna pra fazer o teste, tinha certeza que tiria cozinhado porque tou é com a molestia, uma dor no corpo, uma dor na cabeça, uma dor nos músculos, uma fraqueza nas pernas e nos braços que só eu sei sentir, tudo porque tinha que lavar minhas calçolas. Se eu não lavasse, quem iria lavar? E eu lá sou mulher de entregar minhas coisas íntimas para qualquer pessoa chegar e passar a mão, ficar esfrergando, esfrengando, meter o cacete pra amolecer e depois jogar no quarador? Não, de jeito nenhum. As calçolas são minhas, é obrigação minha lavá-las, isso quem me ensinou foi minha madrinha que me criou, porque minha mãe, coitada, não deu tempo de me ensinar nada. Depois de ter parido dezessete filhos e só eu ter escapado, foi acometida de um mal que Deus a levou loguinho.

Agora me encontro aqui, uma pia de louça pra lavar, o feijão ainda por catar, uma trouxa de roupa pra engomar no ferro a brasa e eu sem conseguir sair do lugar, sem conseguir se quer me mexer, coçar meu sovado que a tempo fervilha. Será algum furúnculo atrás de nascer, porque né assim, eles procuram os lugares mais descabidos para se aprochegarem. Quando não é o sovaco, são as virilhas, as polpas da bunda, no centro das partes íntimas, entre a regada e o caminho da felicidade. Oh vida, meu Deus, oh vida essa que a gente leva sem saber pra onde, sem saber de onde viemos e se estamos mesmo no lugar que queremos. E eu aqui sozinha, desamparada, com um espirro preso querendo se libertar, mas, mas, mas... A quem poderei pedir socorro? Se me sento na rede, fico tonta, se me deito, fico a ver estrelas e carneirinhos pulando nas nuvens, se me levanto, as pernas não obedecem meus comandos... Vou me valer de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, socorrei-me minha santa, livrai-me desse mau momento!! Pronto, encontrei o vick, agora posso empatufar meu nariz pra ver se desentope, mas, se desentupir e começar a escorrer, eu não tenho um lenço aqui pertinho de mim, não tenho papel higiênico, como vou me assuar? E se começar a tossir, vick é muito forte, o cheiro logo agita uma coceira infernal na minha garganta, uma coceira, mais uma coceira que parece uma coisa, o catarro que está pregado no peito sai mesmo que não queira e a latinha com areia que sempre tenho pra cuspir dentro, sempre deixo aqui no canto da parede e hoje, logo hoje inventei de colocar pra fora para mudar a areia e esqueci de trazer. Não esperava essa gripe assim, me pegou desprevenida. Eu que sou sempre tão precavida, gosto de ter tudo no lugar, a tempo e a hora.

Logo hoje, hoje que não tenho casca de laranja nem eucalipto pra fazer um cozimento. O gás tá seco e nem chamei ninguém pra trocar o botijão. O velho inventou de ir pra maré e me deixou aqui, também se tivesse não fazia diferença, deita nessa cama e dorme, dorme que se esquece do tempo. Melhor que vá, que me deixe aqui com meus botões que me viro. Viro é, viro nada, não consigo mexer nem com os olhos, tou toda entrevada. Bem que eu não queria dormir sem rezar, mas de teimosa, já sentindo o cansaço do corpo tive a infeliz ideias de deitar só um tiquinho, adormeci, de dois balanços aqui na rede depois de tomar dois goles de café e um pão.

Ai, a febre, meu corpo pinica como nunca, pinica que só vendo. Estou toda moída, parece que passei a noite na gafieira de seu Pepeu Sanfoneiro... Ai, ai, será que atravesso essa madrugada, ninguém vai sentir o que estou passando, quero gritar e a voz não sai. Preciso chamar alguém, alguém me escute! A chapa, a chapa me incomoda, dói o céu da boca, não posso dar o goto, minha boca não saliva, socorro. Preciso fechar os olhos, eles estão pesados, preciso de ir ao banheiro, estou de bexiga cheia, mas não posso mijar aqui, assim na rede. Já pensou, molhar a calçola, o meu vestido, a rede, os lençóis, vazar até o chão, escorrer, escorrer e se o mijo encontrar a porta do quarto, e se for lá pra sala... Que vergonha, meu Deus, que vergonha.

Estou quente, estou fervendo e os meus lábios estão ressecados. Agora me lembro que não tomei meu remédio da pressão, mas que horas são mesmo, nem tenho noção. Parece que escuto alguém fuçando a janela, e agora minha Nossa Senhora Aparecida, e se for um ladrão? Não, não pode ser. Sinto que meu coração está disparado, será arritmia? Na semana passada o médico disse que eu evitasse fortes emoções, não podia me avexar, tinha que manter a calma, ouço passos, no telhado, e agora meu Deus, não consigo mais prender o mijo e se fizer barulho, será que eles vão embora e me deixam em paz?

A porta, a porta do terraço, não me lembro se fechei direito, não me lembro nem se está fechada, se pendurei as panelas para caso alguém tentasse abrir caíssem e fizessem zuada. Não me lembro de nada, será que estou com aquele mal e não sei? De repente me dá uns esquecimentos... E agora, e agora? Sinto um queima vindo de dentro do meu estômago, pronto, agitou minha úlcera, ai que gosto nojento, e é porque nem jantei fígado. Estou me sentindo um dragão. Estou com ânsia, acho que vou colocar o café e o pão pra fora....

Ai, ai que é isso vibrando no meu bolso, ai, escuto de longe o galo cantar, preciso ver o que é isso, ai ,tá vibrando... Alô? Oi comadre, quanto tempo, eu?! Mulher, depois do pesadelo de ontem a noite, estou boazinha, boazinha pra dedel, quais são as novas pra hoje, tem nenhuma, pois escute, escute que vou te contar tudinho...