A Freira e o Cão.

O sol forte de setembro esquenta a cidade de Belém do Pará, no bairro da Cidade Velha o calor é mais intenso pelas ruas estreitas e pelas casas altas que impedem a circulação do vento, além, do asfalto que foi jogado por cima dos antigos lusos paralelepípedos.

Alfránasia sentia esse calor triplicado, pois suas vestes eram sempre hábito preto e sandálias de couro advindas do Marajó. Alfránasia era jovem e dedicara a vida para a servidão divina, alimentava os moribundos do bairro do Comércio com sopa e pão, porém não conseguia esconder sua beleza singular. Seu corpo havia curvas que o hábito não conseguia disfarçar. Ela já se preparava espiritualmente para a grande festa paraense que aconteceria no próximo mês, e, todos os dias terminavam no pátio do grande colégio onde morava à fazer suas orações pedindo paz e amor ao mundo que vive tempos tão difíceis.

Em uma noite percebeu que ao proferir suas primeiras palavras um cãozinho meigo se acomodava ao pé do banco que ali sentará. O cãozinho ouvia tudo com bastante atenção e depois da palavra amém ele se enroscava por duas vezes nas pernas de Alfránasia e seguia por uma ruela escura e já sombria. Ela o batizou de Homero, fazendo referência às suas leituras matinais, logo, o cãozinho já obedecia pela sua nova identidade. Os dois tornaram-se amigos e sentiam a falta um do outro quando chegava a noite e os encontros não eram possíveis, no entanto, isso era raro de acontecer.

Na noite do último domingo de setembro a freira sentiu a necessidade natural de chegar mais cedo ao local de suas orações, apressou-se com os afazeres e seguiu. Sentiu o vento soprar em direção diferente, os jardins com menos flores, as palavras da prece estavam escassas. Homero custou a chegar, de vez em quando os olhos da pequena se abriam na premissa de que seu amigo chegara. Mas, naquela noite foi diferente. Homero não veio ao seu encontro e foi assim por sete dias. Todos percebiam a aflição de Alfránasia mas, envergonhada do motivo de seu sofrimento não revelou a ninguém o que lhe aflingia.

No oitavo dia, a freira já sem esperanças, iniciou suas orações e um vento muito forte soprou retirando o seu adorno da cabeça e o xale que trazia nos ombros. Sentiu que alguém chegara ali. Alfránasia apertou os olhos e continuou a oração percebendo que uma voz forte e masculina lhe acompanhava, a freira se espantou, pois sempre esteve solitária ao declamar esta oração e as palavras eram particular. Um vento muito forte e frio soprou em outra direção e antes de entoar a palavra AMÉM seu coração disparou, imediatamente seus olhos abriram como pássaros que alçam voo de fuga e com um grito chamou HOMERO?!?!?

Alfránasia se deparou com um rapaz de boa aparência que vestia roupas velhas e exalava um perfume muito agradável. Logo, indagou como sabia as palavras pessoais da oração. O rapaz nada falou só acariciou sua face por duas vezes, Alfranásia assustada não esperou resposta e saiu em disparada tracando-se no quarto a chorar e a orar, no entanto jamais conseguira se concentrar com a imagem daquele rapaz na sua mente. Não conseguia achar explicação para o acontecido mas, sentira que sua convicção não era a mesma.

Alfránasia adormeceu no chão do quarto e pela manhã acordou com o anúncio de uma visita. Era um comunicado de sua mãe que passara mal e restara-lhe pouco tempo de vida, Alfránasia muito nervosa, arruma seus pertences e parte para o Marajó. Ao sair ela olha involuntariamente para o banco onde ora todas as noites e Homero está lá, sentado como quem espera alguém. Ele tinha o pêlo da cabeça e as orelhas desarrumadas mas, ao chegar perto e lhe fazer carícias Alfránasia percebeu que ele exalava um perfume muito bom. O calor do final da manhã cessara dando espaço a uma brisa fresca e um ar de chuva, fenômeno estranho para aquela época do ano e período do dia.

Alfránasia carrega o pequeno Homero e embarca no navio com destino a cidade de Soure, Ilha do Marajó. Alfránasia nervosa e confusa passa as mais de quatro horas de viagem sem apreciar a paisagem que se passa lá fora, e que tanto lhe agradava, ela fixa o olhar em Homero. Ele por sua vez vai com atenção em tudo, das revoadas dos pássaros às paisagens amazônica.

Ninguém sabe ao certo que passava na cabeça da freira aquele momento, notava-se as variadas feições que fazia, sorrindo Alfránasia logo franzia a testa e uma lágrima lhe escorria na face e de repente as maçãs do rosto avermelhavam-se como sinal de muito carinho. Os sentimentos e sensações eram inexplicáveis. Assim, foi interrompido por uma velha conterrânea que a cumprimentava, como o costume de todo marajoara. Quando deu por si, Homero já não estava lá. Os olhos de Alfránasia corriam em minutos todo o navio, a amiga foi abandonada imediatamente falando sozinha. Era difícil procurar Homero pois a adrenalina da chegada faz com que o povo fique alvoroçado, mesmo assim o navio era pequeno perto da busca da freira, quando todos desembarcaram ela se convenceu de que não havia mais nada a fazer.

Para chegar em terra firme deve-se subir uma longa rampa até chegar no trapiche. Alfranásia com sua pequena bagagem sobe de olhar triste e cabeça baixa, nesta hora ela lembrava como embarcou feliz, um ser completo e como ela estava desembarcando, um ser vazio. Mas, Alfránasia foi para visitar a mãe que não estava bem. Então, deveria chegar com um bom astral e boa aparência.

Ela enxuga os olhos, abre um entristecido sorriso e ergue a cabeça. A freira não acreditava no que estava a sua frente! Seus olhos arregalaram-se e um arrepio dos pés à cabeça lhe subiu. O sorriso entristecido tomou vida que aparecia-lhe todos os dentes da boca.

Até hoje o povo de Soure não sabe explicar o que levou alfránasia a fazer aquilo. Pois, ela meteu a mão no adorno da cabeça e atirou-o no rio, abriu todos os botões do hábito e o abandonou no final da rampa do trapiche. O terço que carregava guardou no bolso do vestido amarelo e velho que usava por baixo do hábito e que agora era seu novo traje. Correndo irradiante abraçou-o como se a anos não havia visto, sentiu logo aquele perfume que jamais poderia esquecer. Ele lhe olhou com olhar sereno de quem espera. Ela só conseguiu proferir três palavras:

- É você Homero!!!

Hoje ainda se vê a ex-freira feliz com o homem que a conquistou em forma de cão pelas ruas daquela cidade. Sabe-se que vivem felizes com filhos e um verdadeiro lar, construído com muito afeto. E acredita-se que era a única forma de Homero conquistar o coração daquela freira tão compenetrada na sua abdicação.

Cidália França
Enviado por Cidália França em 07/10/2009
Código do texto: T1853258
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