MULHER BRASILEIRA OU A VIDA COMEÇA COM ELAS

MULHER BRASILEIRA OU A VIDA COMEÇA COM ELAS

A noite já estava indo dormir, pois o sol estava acordando e os últimos piados do curiango, se ouviam distante, fazendo coro com o das corujas empoleiradas nos palanques de cerca de arame farpado.

Ouviam-se os primeiros cantos das irrequietas seriemas que deixavam seus abrigos. Nas veredas contrastando com o céu barrado de ouro vermelho, podia notar que a vida continuava no barulhento cantar das araras. Nos ocos dos buritis alguns filhotes ousavam colocar a cabeça para fora, como que curiosos para saber das novidades. Araras canindé e araras vermelhas alimentavam suas crias e iniciavam uma longa jornada pelos buritizais das veredas. Ao voarem frente o sol que começava a abrir os olhos para o cerrado, era como que um quadro pintado pela mãe natureza.

Fora uma noite mal dormida e quando estava começando aquele sono preguiçoso da manhã, foi desperta pelo latido do “Capitão”, cachorro preto com uma mancha branca bem no meio da testa. Era um latido de alerta, de que alguém estava se aproximando. Levantou-se meio cabreira, mas sem medo, pois ninguém por aquelas paragens teria coragem se fazer alguma maldade aquela singular criatura. Girou a tramela da porta e viu que um vivente se aproximava montado em um cavalo, que depois conclui que era uma égua baia. Deu tempo ainda para se arrumar, escovar a dentadura com um pouco de sabão de buriti, lavar o roso e ainda jogar fora a urina do urinol. O fogão ainda estava quente, mas o fogo apagado. Com um pouco de querosene e gravetos acendeu o fogo e ficou a espera do latido de boas vindas do “capitão”.

Oh de casa!

Não percisa bradá arto que já iscuitei. Bamo entrando que a garapa já tá quasi qui pronta.

Sua benção, Nhá Sebastiana. Deus bençoe.

Que ta fazendo tão cedo por aqui, homê de Deus? Acontece que das Dores, ta com dores desde madrugadinha e intão vim vê si num dá, para a Nhá Sebastiana, aparar a das Dores, que tá com muitas dores. Homê. Nunca ascuitei tanto das dores e das Dores, como agora. Afinar que tem mais dores?

Assim era o seu modo de agir, para aliviar as tensões dos afobados que vinha pedir o seu socorro, na hora mais sagrada da vida de uma mulher. O parto.

Espera um pouco. Primeiro a comida. Toma um copo de garapa com bolo de polvilho doce, que eu vou arrumar as coisas e a charrete. Debaixo de uma pequena construção estava a charrete e seus arreios. Como que sabendo da urgência Trotinho um cavalo sem raça definida já estava esperando para que os arreios fossem colocados e atrelados à charrete.

E então, já forrou o bucho? Então vamos embora.

Trotinho conhecia todos os carreadores, picadas e caminhos, no seu trotar suave, quase que levantando poeira da estrada, ia aos poucos encurtando as distâncias entre as das Dores e as dores.

Num demora um tiquinho que tamo lá, falava com voz nervosa o mensageiro.

Uma pequena e singela casa, pintada de branco, coberta com folhas de buriti, construída com tijolos de abode e no terreiro um mastro com as imagens de São Pedro e São João. Algumas plantas comuns ao cerrado e um canteiro com ervas medicinais. Não tinha cachorro, mas tinha um mundão de galinhas e angolistas, que faziam um barulhão enorme quando alguém se aproximava da casa.

Graças ao Divino que a senhora chegou. Das Dores está com dores que não güenta mais.

A luz que entrava pela pequena janela, decorada com folhas coloridas de papel e a cortina de fitas plásticas, davam um toque diferente ao ambiente. Em uma cama de pau à pique, com um modesto colchão feito com palhas de milho desfiadas bem fininhas, se contorcendo em dores, ali estava da Dores gemendo e suando frio.

Nhá Sebastiana, com olhar experimentado percebeu a gravidade da situação. Quantas horas com dores? Tudo isso e como você agüentou toda esta brabeira? Primeiro filho? A situação é complicada pensou, tirando os anéis dos dedos e pedindo muita água quente e pano limpo e que só ficasse no quarto ela e das Dores. Abriu a velha sacola de couro e foi aos poucos se preparando para o que desse e viesse. Com ouvido muito bem treinado iniciou a “ouvição” do coração da criaturinha que lutava para nascer e viver e maior foi o susto do que a surpresa. O resultado da “ouvição” era duplo e meio atrapalhado. Pela primeira vez nos seus 43 anos de parteira, ouvira algo assim. Procurou uma posição mais cômodo e novamente outra “ouvição”, não tinha dúvida. Duas criaturas com seus corações já um tanto fracos, lutavam para viver. Pensou, pensou e com a sua fala mansa e clara explicou a situação. A barriga não dava mostras de que das Dores estivesse grávida de gêmeos. Lavou as mãos com todo o cuidado e fez o primeiro procedimento. Ficou simplesmente gelada. Não havia dilatação. E agora? Duas soluções. A primeira apelar para o divino. A segunda, rezar que não tivesse esquecido a caixa feita com lascas de buriti, onde tinha suas ervas. Pensou um pouco mais. Como diminuir aquele sofrimento? Acelerando o parto. Mas como se nem dilatação havia? O suor já aparecia na testa morena de Nhá Sebastiana, aparadeira experimentada e vivida. Abriu a caixinha e foi tirando saquinho por saquinho. Não sabia escrever e nem ler, mas sabia só pelo cheiro e forma das folhas, dos pedaços de pau, para que serviria esta ou aquela planta. Separou pachiúba e o cominho. Faltava o principal folha verde de algodão, da onde tiraria o sumo para completar o chá, que promoveria a dilatação desejada de aproximadamente 10 centímetros e com as contrações com duração de 60 a 90 segundos e intervalos de 2 a 3 minutos. E agora? D’onde encontrá foia verdi de godão? Uma leve brisa começou a soprar pela tosca janela e aos poucos o ar foi ficando perfumado. A jovem futura mãe das Dores, agora respirava com dificuldade, o suor escorria pelo rosto redondo e amorenado, a cada contração um gemido que agora era quase que mudo. A brisa foi amainando, o perfume aumentando e de repente uma luz de cor violeta se fez presente. Nhá Sebastiana, sabia do que se tratava. Procurou acalmar das Dores e iniciou então a reza do bom momento. Aos poucos foi ficando calma e as contrações se mantiveram na mesma toada. Quando terminou a oração, abriu os olhos e viu sobre a barriga pontuda da das Dores, umas 10 folhas verdes de algodão. Levantou-se, agradeceu e apanhou as folhas, o pau de pachiúba e cominho e foi fazer um chá. Lá fora o terço era rezado em silêncio, para não assustar a criatura que estivesse nascendo. Chá feito, coado e então era o momento abençoado: tomar o chá aos poucos e esperar o resultado. Não demorou muito. No segundo toque após a primeira cuia de chá, a dilatação já era de oito centímetros e os corações batiam valentemente.

Parou pensou e resolveu. Agora era a hora de acreditar nos seus 43 anos de mulher aparadeira. Um chá de gengibre doce. Dito e feito. Nasceu a primeira criança e logo a seguir a segunda. Precisou chamar a mãe da das Dores para ajudar a cuidar das criaturas que estavam chegando para a vida. Primeiro uma menina, sadia, rosada, pesando não mais que três quilos e logo depois um menino que não parava de chorar, menos pesado, mas espichado.

Com todo o cuidado apanhou as placentas, pois eram gêmeos diferentes, ou seja, placentas distintas. Pediu que fizessem uma caieira quadrada, de um metro ou pouco mais de altura e com bastante pedaços de pau para queimar as placentas e os sacos de água materna.

Choro? Bota choro nesta estória.

A menina Maria José das Dores. O menino José Maria das Dores.

Ao voltar para casa, o dia já estava quase que terminando e Trotinho nunca tivera tratamento igual. Era capim fresco, espiga de milho (pouca se não dava cólica), água fresca, sombra e sem os apetrechos da charrete.

O sol agora é que iria dormir e a lua vinha mansamente nascendo no céu estrelado dos geraes, ali pros lados da Vereda do Mata Nego, na divisa de Goiás com Minas Geraes. Nhá Sebastiana estava cansada, a idade já vinha chegando e não tinha hora para ir ao encontro das mães nos seus momentos mais sagrados e difíceis. Morava sozinha, com seu cachorro “Capitão”, o cavalo “Trotinho”. Na caixa de madeira,uma espécie de bagageiro levava como pagamento, algumas dúzias de ovos, manteiga de buriti, doce de buriti, farinha biju, arroz de pilão e uma manta de toucinho. Não aceitou as galinhas. Era para fazer uma sopa para das Dores. Antes de sair, receitou um chazinho de alfazema e hortelãozinho, caso das Dores não tivesse leite suficiente para as duas crianças.

A noite pegou Nhá Sebastiana, ainda no caminho para casa, não tinha medo e tão se assustava.

Acostumada a varar pelas veredas e geraes afora, sempre chegava ao seu destino, tanto na ida como na volta. Mas aquela noite era diferente. Não cabia em si de tanta satisfação: duas crianças e aquela brisa colocando as folhas de algodão em cima da barriga da das Dores e o perfume que só ela e futura mãe sentiram? Apesar da noite estrelada e a lua cheia não era muito fácil viajar aquelas horas. E foi quando então uma luz azul clara surgiu iluminando os caminhos por onde Trotinho e Nhá Sebastiana teriam que percorrer.

Ouviam-se os latidos do “Capitão”, latidos de boas vindas. Missão cumprida, mais duas criaturas para louvar e honrar a Deus e Nhá Sebastiana, agradecida tomou seu banho na bica de água corrida, que vinha direto de uma vereda mais alta.

Deitou e agradeceu a Nossa Senhora do Bom Parto, a São Raimundo e a Santa Margarida.

Ao fechar os olhos a luz azul clara ainda luzia frente à porta da casa de Nhá Sebastiana.

Quantas e quantas mães e crianças nasceram pelas abençoadas mãos desta anônima mulher, da qual me inspiro para prestar uma modesta homenagem a todas as mulheres parteiras do Brasil e lógico à todas as mães brasileiras.

O que seria da humanidade se não fossem as mulheres? Benditas sejam.

ROMÃO MIRANDA VIDAL
Enviado por ROMÃO MIRANDA VIDAL em 04/11/2009
Reeditado em 04/11/2009
Código do texto: T1904621