HOMEM INTEIRAMENTE NU

(Para Lúcia Helena Collaço, tradutora em Sampa)

O escritor Fernando Sabino, com pena reconhecidamente de ouro, já nos fez seu ofertório: escreveu “O homem nu”. E a literatura brasileira, a mil cavalos-vapor, agradece ao mineiro cidadão do mundo, já desencarnado, pelo brilhantismo dos contos e crônicas do livrinho.

Contudo, o homem nu (sem aspas, aqui) que despertou a atenção do paulistano, ali antes do Natal, foi um homem que efetivamente se despiu. No olho do tempo, ele se desnudou todo. Ficou em pelos, do jeitão que nasceu. Nuinho, o cidadão, e em plena Avenida Paulista, no coração da estupidamente grande, populosa e bela São Paulo.

O desconhecido vestia apenas um par de óculos, para que não se diga que era um nu devasso, contaminado pelas vicissitudes mundanas e terrenas. Também, pela postura e já pelo palco em que se apresentou, estava longe de alcançar a performance de um nu artístico. Simplesmente um nu, envolto no lençol de olhares curiosos e perplexos, na artéria mais central da Sampa do cantor baiano, aquele de “Alegria, alegria”.

Tranquilo, o homem nu. Pelas aparências, ele denotava uma calma filosófica, se não chegasse à fleuma esquizofrênica. Ah, também que se diga: o homem desnudo contemplava o azul do céu, calmo, reverente e pudicamente estoico. Era feito um poeta deslumbrado que acabasse de descobrir os encantos – ao mesmo tempo – luxuriantes e pudicos da sua bem-amada, a musa de suas fantasias idílicas.

O anacoreta nu nem ligava para as exigências da moralidade pública, impostas pelo convencionalismo social. E, estando impassível, não parecia ser aluado nem portador de tara exibicionista. Era apenas isto, só: um homem inteiramente nu. Seus óculos e sua calvície davam-lhe o tom de sujeito sério, talvez mais gasto que envelhecido. E não exibia sinais de abilolado. A medir-se pela pose teatral, o gajo não era tantã, de modo algum. Até que ele portava aspecto de pessoa sensata, razoável. No entanto, nu, lá na Avenida Paulista, sem sequer importunar-se com os olhos atônitos da multidão em derredor.

Um homem plantado na jugular da grandiosa Sampa, nu inteiramente, o que não tem sido usual, senão São Paulo viraria um só calabouço. Pelo bem-bom da moralidade, pela boa-fé do paulistano, diga-se de viagem. Mas o homem, coitado lá dele, desafiava a moral pública, a pudicícia alheia, os ditos bons costumes e os direitos da cidadania. Mesmo assim, o estranho não alimentava modos de malfazejo, intencionalmente decidido a macular as leis da sociedade. Não, de modo algum. Apenas um pacato camarada que se despira, uai!

Às perguntas da repórter, que se decidiu a enfrentar o nu, o homem desnudo só lhe deu o silêncio por resposta. Não queria aporrinhar-se. Talvez porque devia ver coisas no ar, quem sabe a visão de um querubim. Quando a polícia veio e o agarrou, em pelo e osso, o nu é que fez sua única pergunta incisiva, já virado para as câmeras da tevê:

“– Quem é que manda no mundo?”

Fort., 21/11/2009.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 21/11/2009
Reeditado em 21/11/2009
Código do texto: T1936758
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