O dia 8 daquele mês

Sentar na cadeira acolchoada do café era luxo para a família Smith. Dona Jaqueline diria que os gastos superficiais não tinham espaço no orçamento do mês, enquanto Seu George diria em tom de brincadeira que uma pinga valia muito mais a perda de tempo. Talvez pela rebeldia do ato contra seus pais, Lucas tinha pelos cafés um gosto especialmente prazeroso.

Na manhã daquele dia 8, depois de pedir seu café de R$ 2,50, Lucas refletiu sobre as contas que estavam vencendo naquele mesmo momento. A luz, a Internet, o gás e o aluguel. De todos, o último era o que mais amedrontava, porque se fosse despejado sabia que ouviria um sonoro “Eu te disse, Jaque!” de seu pai na próxima vez que fosse visitar. Então teria que aceitar uma quantia a ser somada dolorosamente ao que já devia a seus pais, para que então não virasse mendigo de vez. E, de alguma forma, aqueles pensamentos tornaram seu café mais amargo do que de costume.

O dia 8 também trazia outras angústias, outros assuntos. Foi o dia do mês em que o seu último chefe lhe dera a notificação de demissão, fato que marcou a memória por ser exatamente o dia em que seu cachorro Lude morreu – um trauma de infância. E junto da notificação, recebeu também o sorrisinho cínico do que poderia considerar seu arquiinimigo, Paulinho, que posteriormente viria a se casar com sua irmã e tornar-se um cunhado muito inconveniente. “Veja, Lucas, como o Paulinho se veste bem.”, dizia sua mãe todas as vezes em que o obrigava a participar de um jantar de família.

Dia 8 também era ironicamente o dia amaldiçoado de seu nascimento. Um dia feio, sem Sol, nem vento, quinta-feira tediosa, como o pai gostava de contar, ajudado pelos comentários condescendentes da mãe. “Mas tinha que ser o Lucas!” alguém diria frente à repetição da história, e todo resto riria, como se Lucas fosse sinônimo de um dia tedioso e feio.

Aquele dia 8 também não era dos mais bonitos. Nublado, com cara de uma chuva que não caía. Enquanto olhava pela janela, Lucas imaginava se sua vida seria melhor caso seu nascimento fosse marcado pelo calor de um Sol brilhante e muitos acontecimentos emocionantes, o que o levou a ter pena dos bebês que nasciam naquele dia. Um dia 8, feio e tedioso.

Os pensamentos continuaram, como sempre era no momento do café. Se um carro buzinava, ele se interrompia pelo susto, mas jamais deixava de refletir sobre o que quer que fosse. Naquele dia, porém, naquele instante, a interrupção não foi uma buzina. Um vulto amarelo-ovo passou tão rápido pela janela que não foi possível distingui-lo à primeira vista, mas Lucas sabia que aquela cor viva e vibrante lhe dizia alguma coisa.

Olhou de novo, mais adiante, antes da janela limitar sua visão, e puxou da memória aquele vestido amarelo-ovo. Sim, era ele. O vestido favorito de Juliana.

Juliana era uma moça de interior, aspirante a atriz, que Lucas conquistara numa noite de bebedeira. O bar não poderia ser mais sujo e errado e os motivos mais que sexuais, mas conseguiram tirar disso um relacionamento de quase 5 meses, terminado, para sua surpresa, num dia 9 e não num 8.

E lá estava a moça, linda de surpreender. Os cabelos cheios e enrolados transformados em cachos bem feitos, os quilinhos a mais espalhados nos lugares certos, o sovaco antes peludo por costume, totalmente liso. Andava rebolando, como se fosse grande coisa, e com pressa porque deveria estar indo a algum lugar, diferente de Lucas, que aparentemente estava empacado para sempre.

Sua sorte era tão inacreditável que, Lucas soube na hora, aquilo era mais uma armadilha. Afinal, aquele era um dia 8. Ele iria até ela, jogaria o às de seu jogo de sedução e ela lhe apresentaria um namorado tipo modelo de revista. Ele restaria com suas memórias de Lude, as contas a serem pagas e uma família odiável.

Lucas tornou a tomar seu café, como se nada tivesse acontecido. Depois do choque inicial, seu coração agora acalmava, certo de que ignorar o fato era o mais seguro a se fazer. Por sua força de vontade e mente astuta, até quis pedir mais um café, mas R$ 5,00 em bebidas viciantes era demais para um cara prestes a ser despejado. Então se levantou e foi ao caixa, onde a moça antipática recebia seu dinheirinho raro e suado. “Vaca.”, ele gostava de pensar, para tentar aliviar a dor de pagar alguma coisa.

Na saída, os passos pareciam pesados, como se o corpo não quisesse sair do café. Era sempre assim, porque o café tinha aquele ar de proteção contra as coisas que tinha que aguentar a todo o momento. Como o dia 8 era especialmente difícil, estar no café era sua bênção, já que lá dentro raramente algo de ruim acontecia.

E esse pensamento acabava de passar pela cabeça, quando viu, de relance, o amarelo-ovo entrando pela porta. O coração acelerou de ódio e medo e seu impulso foi correr porta afora antes que adicionasse mais uma memória terrível aos dias 8 de sua vida. “Olha pro chão e corre”, pensou enquanto dava passos duros e longos para longe.

- Lucas?

Ouvir seu nome naquela voz fez passar um frio pela extensão da espinha.

- Juliana. – falou no melhor tom que a voz falha lhe permitiu.

Ainda estavam dentro do café, o que causou a Lucas um buraco inexplicável em seu estômago. Teria que achar outro café no dia seguinte, onde pudesse se sentir confortável e seguro novamente.

- Ah, eu achei que era você mesmo! – ela disse, com mais animação do que ele esperava.

- É... sou eu... – respondeu, sob um sorriso amarelo de desgraça.

- Você tava tomando café? – perguntou ela, mirando diretamente em seus olhos.

Juliana estava linda, tão linda que ele só conseguiu responder segundos depois.

- Ah, estava. Já acabei.

- Ah, que pena. – sorriu a moça, os dentes muito mais brancos do que nas velhas lembranças de Lucas.

Ah, Juliana... Ah, Juliana... Lucas sabia que precisava sair dali o mais rápido possível, antes que uma tragédia ocorresse.

- Bom, vou indo. – falou de forma breve e se virou, mas antes que fosse, ouviu a voz dela dizer:

- Me acompanha enquanto eu tomo um café?

Sua força de vontade existia, mas em algum lugar em que não pôde alcançar suas pernas, que não se mexeram. Juliana tinha uma voz suave, de quem faz um pedido tão fácil de ser realizado.

Ele se virou, enfim, e fez que sim. Sentaram-se juntos enquanto ela pedia um café e ele se afundava em seu próprio desespero. Sentar-se no acolchoado do café nunca fora tão difícil. Lá do caixa, a moça antipática que tinha seu dinheiro olhava com atenção, como o espectador que espera um acontecimento. Lucas se sentiu pior ainda frente à platéia.

- Hmm, isso aqui é ótimo! – ressaltou Juliana, os lábios cor-de-rosa claro sujos da espuma do café.

- É, eu sei. – respondeu Lucas com amargura.

- Ah, você não mudou nada! – riu, como se aquilo fosse engraçado – Ranzinza como sempre.

Lucas tentou sorrir, de simpatia que fosse, mas não era seu momento.

- Você mudou. – disse ele, tentando não cair no silêncio constrangedor.

Ela sorriu, tão radiante que o corpo inteiro de Lucas se arrepiou.

- Sim! Você notou? – e ela ajeitou os cachos morenos que caíam sobre a testa – Aprendi o valor de uma depilação. – e riu.

Ele não conseguiu segurar o riso e então sentiu um gelo se quebrar dentro de si.

- Você está linda. – se ouviu dizer, antes que pudesse pensar e então o silêncio veio, da vergonha dele e da vergonha dela.

- Obrigada. – agradeceu, com as bochechas rosadas.

E o momento chegou. Lucas sabia muito bem o que o próximo vácuo de conversa queria dizer e a tragédia lhe pareceu próxima demais. Mesmo assim, naquele ponto, não conseguiu mais se segurar contra seus instintos.

- Hm.. Quer dar uma passada em casa?

As entranhas se mexeram dentro na barriga e ele já conseguia ouvir uma resposta grosseira e atravessada, ou pior, educada por caridade. A moça do caixa ainda observava, com olhos de coruja que não piscam, e Lucas, sem saber por que, lembrou-se dos seus R$ 2,50.

- Quero. – respondeu uma voz baixa e risonha.

Demorou, mas ele conseguiu processar a resposta a tempo de dar um sorriso tão largo quanto sua boca conseguia se esticar. Saíram tão rápido dali que quando andavam pela rua, Lucas estava ligeiramente tonto. Sua sorte havia mudado ou a decepção viria depois daquela carga de esperança, para que fosse mais cruel? Quando ele espiava Juliana pelo canto do olho, ela lhe parecia determinada o suficiente.

Quando chegaram em seu apartamento vazio e fedido, um possível namorado raivoso dando-lhe soco atrás de soco doía na imaginação. Talvez fosse uma pegadinha de vingança, talvez ela lhe odiasse a esse ponto e o dia 8 era um dia perfeito para isso.

- Aqui também nada mudou. – sorriu a moça, ajeitando o vestido amarelo-ovo.

Lucas se aproximou, ainda hesitante. O que aconteceria agora?

Juliana jogou-se em cima dele, como costumava fazer há anos atrás e encostou em seus lábios com a língua, com uma vontade imprópria. Lucas respondeu quase de imediato, ainda não acreditando em si mesmo.

Mais tarde, quando ele acordasse em meio a cachos pretos e perfumados, tão nu quanto no dia de seu nascimento tedioso, perguntaria desorientado:

- Que dia é hoje?

Para qual uma voz simpática e cansada lhe responderia:

- Segunda-feira... dia 7.