Négriers e Bagnari II
(continuação)
Lembro-me vagamente da casa em que viviam as irmãs Bagnari em Gondola.
Tento organizar esses arquivos mentais tão remotos e com eles reconstruir a paisagem, a arrumação espacial, o cenário.
O que está mais nítido nesses flashes da memória era o lugar em que brincávamos. Entre a casa e umas pilhas altas, talvez de madeira cortada, arrumada e empilhada, havia uma área muito grande de chão batido, destinada, quem sabe, a ser no futuro uma rua larga, frente ao conjunto de casas alinhadas.
Na época, muitas das ruas não eram asfaltadas, e não havia movimento de carros por ali. Frente à casa dos Bagnari, aquele espaço era para todos os efeitos, e na minha memória, um enorme pátio limitado pelas pilhas de madeira e por grandes árvores, possivelmente abacateiros.
Sempre nítida também é a cor da terra, entre o vermelho e o castanho escuro.
Arrancávamos folhas das árvores, eram folhas grandes. As folhas eram o dinheiro de mentirinha da meninada, cada folha uma nota. Era ver quem conseguia mais folhas nas mãos tão pequenas e lambusadas pela seiva branca e pegajosa que vertia delas. Mãos cheias de folhas muito verdes e brilhantes. Elas eram sobrepostas, cuidadosamente arrumadas, empilhadinhas - com um critério ali mesmo discutido, entre divergências, discussões e acordos finais - cabinhos sobre cabinhos, as pontas sobre as pontas. Com esse dinheiro verde, pagávamos imaginários produtos de um imaginário comércio que fazíamos e arquitetávamos ali de improviso.
Depois, a mãe Bagnari chamava todo mundo para o lanche, andiamo tutti, andiamo via, e lá ia a malta toda tomar um refresco saboroso, comer biscoitos acabados de fazer. Festa permanente, episódios que trago da memória para o papel.
Do reviver dessas lembranças di quando eravamo piccoli, alguns detalhes saltam à vista. Religião e capitalismo já estavam presentes nas nossas vidas, e as jovens cabecinhas já os incorporavam nas brincadeiras, tentativa de interiorizar a realidade e ajustar-se a ela.
O mundo desfez-se em muitos ao longo do processo de descolonização da África. Nunca mais soube das irmãs Bagnari, mas elas estão sempre aqui e são referência permanente na minha identidade. Pensar nelas já é estar em casa, de volta a Moçambique e às mais gratas lembranças da vida - a inocência primordial.