AS HIPÉRBOLES DO SEU PIPIU

Homem para exagerar nas tintas das boas lorotas que contava era mesmo aquele ali. Ia com as hipérboles na cumeeira do salão onde estivesse e, caso ao ar livre, melhor ainda, pois o seu limite de invencionices dava lá por riba das escarpas do azul celestial.

Seu Pipiu apreciava um charuto roxo e só tomava conhaque São João da Barra. Pensem como o fulano era versado em contar histórias fantasiosas. Igual a ele, nesta modalidade de perícia, nunca vi mais em seu ninguém. E, ainda por cima da carne-seca, as más línguas do bairro afirmavam com a mão em cima da Bíblia que o velhusco puxava num flerte tremendo com a Rita, uma que rezava em carnes trilhadas, urucubaca de solteironas que ficaram para tia, quebranto de menino novo e também em espinhela caída.

Caso ele mantivesse coisa de xodó com a vizinha de quarteirão, isto não é mais departamento para que eu me enxira e vá contar em aberto para Deus e o mundo, depois o zé-povinho pacóvio ir abusar de ouvir. Sei onde meto o bico; melhor é que me confesse um leigo nessas fofocas de beira de caminho.

Agora, com certeza bastante verdadeira, que Seu Pipiu exagerava nas tintas daquilo que destampava da boca, lá isto Seu Pipiu era um exímio e competente gajo de conversa e lorotas fáceis.

Uma vez, para assinalar seu elevado senso de observação, o fumante de charutos que, por sinal, só se cobria com chapéu de massa, me asseverou com toda fé de verdade que, no antigo puteiro de Fortaleza, ali para aquém do Forte de Nossa Senhora da Assunção e bem ao colarinho da velha Praça dos Mártires, o popular Passeio Público, havia uma rapariga que se notabilizou pelos peitos agigantados de que ninguém mais, na face da terra, era possuidora.

E enfaticamente, sem um tantinho de aumento, Seu Pipiu sentenciou, desabotoando um tiro na mosca:

“– Rapaz novo, ainda, cheiro de tesura, eu fui muito à zona do Curral. Menino, lá naquele puteiro, que também era visto como Arraial Moura Brasil, existia a quenga Emília. Não era brincadeira: ela tinha uns úberes tão grandes, que ela – para que ninguém se impressionasse – jogava era os bichos para trás. Mesmo assim os mamões da mulher ainda iam bater lá no rego da bunda.”

Não invento coisas como o Seu Pipiu, apesar de que prezava muito o meu vizinho, porque senão a canalha de rua ir-me-á chamar de mentiroso. Por exemplo, vi e ouvi, em carne e osso, em Porto Alegre, um pássaro preto, de bico vermelho, que me afiançaram ser de procedência indiana. Pois não é que a ave hindu falava bem bonitinho?!

Claro que não iria pôr preço no pássaro, mas me pus a olhá-lo num viveiro enorme. E ele, na maior cara-de-pau, inquiriu-me assim: “– Quer café?” – aí parou o discurso, me olhou de viés, e fez de novo: “– Quer cerveja?” E eu, mudo estava ali, calado ali fiquei. Lá eu ia puxar um papo no desigual!... De repente, quem sabe, aquela ave hindu arranharia alguns termos engrolados no idioma, lá deles, algo como as línguas híndi, bengali, sânscrito, tâmil, urdu, etc. Eu, hein?

De outra feita, aconteceu de seu Pipiu casar uma filha com certo baixinho maranhense, mestre em Matemática, que, ao dar de mão da lapa de mulherona, logo zarpou para estabelecer-se em Belo Horizonte. Lá, fez-se no magistério, subiu nos tamancos e até publicou uma coleção didática para uma editora de trânsito nacional.

Aí, sim, deram-se hora e vez de Seu Pipiu bandear-se para o rumo das Gerais. Pegou ônibus, enfrentou estradas esburacadas e comeu poeira, Brasil afora, que vertia água pelo joelho, se ao menos cogitasse em escanchar-se num avião. Assim, deu em Belô, viu e ouvir o povo simples e civilizado daquela belíssima urbe mineira.

Quando regressou à terrinha própria, não poupava elogios aos modos mais corteses – segundo ele – dos mineiros, em comparação com a cabroeira safada dos cabeças-chatas da terra de Iracema e do Dragão do Mar. Aquilo é que era civilização, todo mundo dava “bom-dia”, “boa-tarde”. Orgulho de gente besta era para povinho sem eira nem beira, etc., e tal que tal e tal.

Mas tinha uma coisa que cabra besta que fosse lá, em Belô, não podia deixar de levar em conta: o cuidado nos transportes coletivos. Imaginem, calculem bem... Ainda conforme o que espalhou em todos os becos do nosso bairro, é que transporte coletivo, ônibus, peruas, lotações, o que fosse, naquele diabo de terra, qualquer marca de transporte, andava sempre tinindo, cheio pelas bordas, um sufoco de enforcar o infeliz do passageiro. E exemplificou, a fim de que ninguém se enganasse com nome pomposo de cidade bela, esse tal Belo Horizonte:

“– Menino” – daí Seu Pipiu arregalou o olho e me falou sério, encenando com os braços –, “seu compadre, rapazinho sem barba, se você um dia for a Belo Horizonte e pegar um ônibus, quando você entrar nele não vá cair na esparrela de olhar para cima, de jeito nenhum. Ah, não olhe mesmo, porque senão você não desce mais a cabeça, nem enxerga sequer quem está ao seu lado. Faz um cipoal de braços tão danado no seu gogó que diabo algum desfaz mais o entrançado. Aí você tem que ir até o final da linha, sem nem respirar e só vai ter fôlego quando o nó de braços é desfeito.”

Não tivesse conhecido muito bem o jeitão exagerado de Seu Pipiu, ainda hoje, depois de tantos anos, o diabo é que botaria os pés a caminho de Belô. Nunca desmereci a Capital mineira, por conta das epopeias de exagero do meu vizinho fumante de charutos, metido a Don Juan; ao contrário, qualquer dia desses, eu irei tomar às mãos o mapa daquela cidade e ver em que bairro, em que rua e em que número está situa-se certa janela.

Fort., 05/03/2010.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 05/03/2010
Reeditado em 05/03/2010
Código do texto: T2121638
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