O LOBISOMEM

Faltavam apenas cinco quilômetros, teria tempo de sobra para chegar à cidadezinha lá em baixo e arranjar pousada antes do sol se por.

O vento forte varria as folhas secas pela estradinha de barro. Uma família de Casacas de Couro cantava num pé de mulungu que servia de estaca para a cerca de arame farpado. Encantado pelo espetáculo, desviei a atenção da estrada e cai num buraco dos grandes.

O carro sentou o papo no chão e o motor morreu. Roguei todas as pragas que sabia. Passei em revista todo o repertório de palavrões além de inventar outros. Desci do carro. Chutei o pneu. Indiferente à minha crise de histeria, o carro não se moveu. Empurrei para frente na esperança de que a ladeira facilitasse a saída do buraco. Nada. Eu estava irremediavelmente a pé.

Peguei o casaco, fechei o carro e olhei para a cidade lá em baixo, muito mais distante do que eu imaginara e comecei andando em busca de ajuda. A noite vinha caindo rapidamente. Na curva da estrada surgiu uma casa. Bati palmas, chamei insistentemente, nada. Ninguém atendeu. Silencio sepulcral. Pelo visto não tinha ninguém em casa naquela hora. Voltei para a estrada. A lua surgiu de trás dos montes, majestosa, prateando a estrada que brilhava como se estivesse cheia de diamantes. Não havia ninguém na estrada. Parecia que eu estava num planeta deserto.

Logo após a ponte sobre o leito seco do riacho a placa de Oficina Auto Elétrica – Organização Pai & Filho. Toda cidade do interior do nordeste tem dessas placas que não levam a lugar nenhum.

Que diabos quer dizer Organização Pai & Filho?

Quem são essas pessoas?

Quais os seus nomes?

Disse a mim mesmo: matutos idiotas! Grande merda Organização Pai & Filho!

A oficina estava fechada com grade de madeira. Bati palmas. Olhei para dentro. Dava para ver toda oficina. Ninguém para me atender. Uma corrente grossa enrolada na grade com três cadeados um em cima outro no meio e outro em baixo, não permitiam que ninguém entrasse.

Gritei a plenos pulmões, ô de casa! Estou precisando de ajuda!.

Bati com um pedaço de pau. Nada. Ninguém apareceu.

A rua, depois da oficina se dividia em duas pistas com canteiro no meio. Lá no fim a igreja. Fui andando para sentar num daqueles bancos da pracinha. Precisava descansar. Num relance julguei ter visto luz numa das casas, mas havia escuridão total naquelas casinhas todas iguais, conjugadas dos dois lados, com as fachadas caiadas ou pintadas com cores fortes, ressaltadas pelo brilho da lua.

O vento trouxe o som de algo correndo e os cachorros ladrando em alvoroço. A escuridão agora era quase total, pois nuvens toldavam a luz da lua. Um vulto passou correndo rente as casas arrastando correntes ou algo metálico que batia nas pedras e desapareceu pela rua que seguia pelo lado direito da igreja.

Procurei minha arma. Havia deixado no carro. Seguindo o instinto de conservação, subi no cruzeiro e sentei num dos braços. Lá em cima eu não seria alcançado pelos cachorros e qualquer coisa que aparecesse eu poderia me defender, chutando a quem quisesse me pegar.

Passou mais de hora até que surgiu o farol de um carro descendo a ladeira. Quando ele passou pela ponte, desci do cruzeiro e fui ao seu encontro. Era o padre. Afinal apareceu alguém vivo nessa cidade, disse para o recém chegado. A quem o senhor está procurando? Perguntou-me o sacerdote admirado. Contei o que havia acontecido e perguntei que fim havia levado o povo daquela cidade.

- Estão todos aí. Não saem das casas com medo do lobisomem que o senhor viu passar arrastando correntes. Vamos até a casa paroquial. Você precisa comer e dormir pois só vai conseguir ajuda amanhã, com o sol claro.

O padre guardou o jipe velho na garagem ao lado da casa e entramos. Fomos direto para a cozinha. O padre Marcilio atiçou o fogão de lenha e colocou a panela de barro na trempe. Com pouco tempo o cheiro bom de sopa encheu a cozinha.

Sobre a mesa uma garrafa térmica velha, manchada já continha o café ralo e fedorento que iríamos tomar. O padre pegou bolachas no armário e serviu dois pratos fundos com a sopa fumegante e de sabor agradável. Pegou uma das bolachas colocou na mesa e deu-lhe um murro para quebrar. A bolacha era quase tão dura quanto a mesa. Com muito custo consegui quebrar a minha e coloquei os pedaços dentro da sopa. Só assim conseguiríamos comer sem quebrar nossos dentes.

Depois do jantar fomos para a sala de visitas e o padre contou a história do lobisomem. - Dizem que sempre correu lobisomem por essas bandas, mas de uns tempos para cá, surgiu esse novo que está aterrorizando todo mundo principalmente nas noites de lua cheia.

- Mas toda historia de lobisomem tem sempre um caso amoroso por trás, sendo acobertado pela crendice popular, argumentei.

Pensativo, o padre, apenas balançou a cabeça concordando com a minha observação.

Na manhã seguinte, logo cedo, fui à oficina da Organização Pai & Filho, arranjar um meio de tirar o carro da estrada. A rua estava apinhada de gente comentando a passagem do lobisomem. Um senhor já bastante idoso estava afirmando ter visto o bicho, no terreiro dele, se espojando na bosta do jumento.

Bitonho e Bituzinho (o pai e o filho donos da organização) foram comigo desenterrar o carro. Apenas pás e enxadas para fazer o serviço. Pensando que uma pedra poderia ser mais resistente, peguei uma chibanca. Enquanto andávamos, Bitonho esclareceu com a sabedoria popular, esse lado tão rico do folclore que não está escrito, passa de boca em boca, de geração em geração e se mantém vivo.

- Lobisomem é filho de lobo com mulher da vida ou então o sétimo filho macho de quem já tem seis meninas fêmeas. Nas noites de lua cheia o coitado cresce os cabelos pelo corpo, os dentes viram dente de cachorro e arrasta corrente por onde passa, só volta para casa depois que se espoja na bosta de jumento. Ai do cristão que tiver a infelicidade de topar com um bicho amaldiçoado desses. Eu mesmo já vi dois. Por isso eu tranco a casa toda. Tranco a oficina e fico com minha família dentro de casa que é para o bicho não pegar ninguém meu.

- E tu já visse algum, Bituzinho? Perguntei.

- Não vi não senhor. Mas já ouvi e quase morro de medo agarrado com meu pai. Meu pai já viu e disse que é perigoso. Eu é que não quero brincadeira com um bicho danado desse, te esconjuro.

Bitonho era bom no serviço. Colocou o carro no macaco e encheu o buraco com barro e pedras. Quando tiramos o macaco, o carro saiu com a maior facilidade. Fui levar os dois na oficina e perguntei pelo preço do serviço.

- E quem é que vai cobrar uma besteira dessas para um cidadão como o senhor?

Insisti em pagar, mas a recusa categórica foi maior que meus argumentos.

- Então da próxima vez que vier por essas bandas, trarei um presente para o senhor.

- Homem deixe disso...

Passaram-se seis meses até que eu voltasse naquele fim de mundo, mas não havia esquecido Bitonho e Bituzinho que ficaram encantados com a maleta de ferramentas cheia de chaves de boca, estria, Yale, estrela, alicate de pressão, o escambau. Esse presente me valeu uma galinhada com quiabo e pequi.

Durante o almoço perguntei pelo padre Marcílio e Bitonho me disse que ele havia sido transferido depois que a filha do bodegueiro Deodato apareceu buchuda e contou que o filho era dele. Contou também que os encontros eram às escondidas ou nas noites de lua cheia quando o padre se vestia de lobisomem.