Madalena

O palco do Bota’s era uma mentira por definição. Compunha-se por dois tatames encostados um no outro, uma caixa de madeira que servia de banco e um microfone doado. Não era elevado e, de algumas mesas, sequer visível. Naquela noite, porém, não havia nada que conseguisse prender meu olhar como aquele espaço rejeitado, pertos dos banheiros. Aquela era a noite de Madalena e toda sua falta de graça.

Mais cedo, naquele dia, eu havia experimentado um pouco daquele ser insosso que vagava pela Universidade. Chegara tímida, de forma que nem percebi, e disse algo sobre o Bota’s. Algo sobre se eu poderia ir. Não era uma pessoa de comunicação fácil e, portanto, tudo sobre ela era suposição. Eu balancei a cabeça, incerto, e a vi se afastar em direção a onde quer que fosse depois das aulas. Madalena era um mistério; um segredo ambulante que, na verdade, não despertava nenhuma curiosidade.

Madalena ajeitou-se, pretensiosa. Havia em seus trejeitos um ar grosseiro e irritante. Enjoava aos poucos assisti-la se mexer. Mesmo assim, meus olhos não desgrudavam dela. Pela primeira vez, sem que eu desejasse, a vi como uma porta escancarada me revelando um algo indefinido. Um algo que subitamente conquistou minha atenção.

“Hoje eu to no Bota’s.”, fora assim que dissera. Sem informações exatas, como que cuspido em um impulso. Vestia uma camiseta branca, uma calça jeans escura e um tênis preto e surrado. Nem mesmo o broche em formato de tulipa, um objeto peculiar, conseguia atrair algum interesse. Naquela noite, o broche estava presente. Preso em outra camiseta, acinzentada, fazendo conjunto com a mesma calça jeans escura e o mesmo tênis surrado.

Ali estava ela, no “palco” do Bota’s. Ela estava lá, na magnificência de seu momento. Talvez um auge da vida-Madalena. Eu, sinceramente, não sabia. A expressão em seu rosto era invariavelmente a mesma: cara lavada, sem maquiagem, olhos sonolentos e lábios eternamente relaxados em neutralidade. Também nunca havia me incomodado pensar que ela nada sentia, nada pensava, nada exprimia; até aquele momento.

A decisão de ir ao evento surgira de uma necessidade de sair de casa. Era uma vontade de querer mergulhar em algo desconhecido, que me assaltava às vezes. Foram horas de busca por algo novo até me lembrar de Madalena - talvez a pessoa menos memorável do Universo. Não havia nem uma parte de mim – nem aquela parte mais excêntrica e aberta – que queria descobri-la. Mas, eu sabia, eu tinha que sair de casa.

Como a cantora que se preparava, teoricamente o centro de atenção, Madalena ainda conseguia sumir por trás do microfone. Ao meu lado, duas mocinhas comentavam o aparelho doado. “Olha, tá tudo enferrujado”, dizia a loira, com nojo. Nem o fato de que Madalena tinha a boca próxima da ferrugem mais acentuada levava a conversa em sua direção.

Quando o show começou, uma ou duas cabeças se viraram. A casa estava cheia, mas o violão rosa-choque não conseguiu mais ouvintes para ela. Senti piedade, pois agora estava envolvido. Desejava que todos a vissem como eu: aquela criatura lindamente camuflada. O gemido baixo mal saía de sua boca e se dissolvia entre outros ruídos. O som do violão entrou, sem ritmo nenhum. Sua música era tão absurda quanto aleatória.

Madalena não conseguiu terminar de apresentar sua arte. Por causa de uma decisão gerencial, se é que o Bota’s tinha disso, alguém ligou a rádio que tocava os singles preferidos da maioria. O povo se animou e a cantora se viu expulsa de seu próprio show. Eu ainda não conseguia desviar meu olhar dela.

Pronta para ir embora, ela se levantou da caixa de madeira e percorreu os olhos pelo salão. Virei para o outro lado de imediato, para que ela não me visse ali, espionando. Era como eu me sentia: um espião. Alguém que invadia, um espectador que preferia apenas ver e não participar. Eu quis que ela continuasse a fazer o que quer que quisesse, sem minha interferência. Era fantástico vê-la assim.

O modo como ela olhava à sua volta reavivou uma lembrança muito antiga do começo das aulas, da primeira vez que vi Madalena. Ela encostava-se a uma árvore, de onde enxergava um cão correndo atrás do próprio rabo. Patético, dentro de um ciclo infinito, até o momento em que alcançou o rabo com uma mordida, o largou e voltou a correr atrás dele. Eu me perguntei como alguém poderia ficar tão absorvido com aquela cena tediosa. Depois desenvolvi a teoria de que só Madalena, dentro de seu mundo desinteressante, poderia dar espaço para algo tão chato.

Naquela noite, no entanto, eu me senti um pouco Madalena. E percebi que, além de toda a sua invisibilidade, Madalena era um algo extraordinário. Uma grandiosidade escondida, um tesouro disfarçado, um conteúdo densamente indefinido. Madalena era, na definição mais exata possível, um daqueles caminhos que nos levam longe, para um novo patamar de realidade.

Ela era uma dessas, certamente sem volta.