ROXO DE PAIXÃO

Até poderia dizer que o caso dele se dera por amor. Vamos, aqui, no entanto, deixar por muito menos. Tenho, cá, as minhas convicções de que o meu amigo C..., a vida inteira, com toda certeza, foi mesmo foi ferroado pelo mosquito da paixonite aguda.

Era de nome Magnólia a eterna paixão do meu – até certo ponto – desventurado companheiro de conversas de beira de copo. Até certo ponto desventurado, sim, digo eu, porque paixonite dele, à parte, além da bebida que passarinho não aprecia beber, diariamente, C... revelou-se um camarada de sorte: profissão definida, no ramo da telefonia, casa paga, duas filhas lindas e uma mulher leniente que o tolerava chegar dos serões da inveterada boêmia, sempre às altas da madrugada. E isto se dava, sempre, lamentavelmente, das segundas aos domingos, sem o gazeio de uma só vez por semana.

Meu amigo C..., de moto próprio, descobriu que gosto de rabiscar papéis e vivia o tempo todo, quando me encontrava no ponto da cerveja do almoço, aos domingos, então mais raro no restaurante do Zé Aírton, a me torrar a paciência – pedindo não – exigindo que eu lhe fizesse um escrito que contasse e coroasse o amor, a paixão, a fixação, lá dele, para com a Magnólia. E eu ia protelando, sempre adiando, não sei se causo ou crônica, pois não me apraz coisa assim, prato feito, de encomenda. Faço ou não faço o texto; não sou escriba de aluguel, mas somente se ele, o escrito, me der na veneta, como de supetão, ali na tábua dos queixos.

Sem traçar nenhum dado biográfico considerável da rapariga Magnólia, C... apenas me repassou que conhecera a mocetona de mulher, ela já dobrando a esquina de formosa e exuberante c o r o a, e ele ainda ali pelas beiradas dos seus quinze anos, por coincidência estabelecido com os pais no mesmo bairro da minha meninice, o Monte Castelo. Mas eu só viria a conhecê-lo, anos depois, aqui, já montado no meu barco atual, mais litorâneo, onde também ele possuía telhado, dois cães, gatinho siamês, papagaio e as duas filhinhas adolescentes, lindas de viver.

“– Magnóooooolia, a mulher da minha vida!” – isto era a boca do simpático, fino, educado C..., amigo de Deus e o mundo.

Assim, com esse grito de guerra e prova de amor e paixão, era como se pronunciava o meu competente amigo em guardar acervos sentimentais, lá do passado. Ele relatava que conhecera a vizinha lindíssima, de porte avantajado, pernas e seios esculturais, quando era ainda um meninão imberbe, sem nem penugem no pé da mandioca.

Pois muito bem. Conhecera aquela arquitetura de fêmea, que o cativava com diversos mimos, ternura e outros trejeitos de afeto. Não deu outra, e o jovem de seus quinze anos, lá, por aí assim, montou na barcarola da vez e nunca mais largou de pensar e querer bolinar nos pertences da formosura da Magnólia.

Contudo, ainda verde, ele tímido, a moça era toda gentilezas, só gentilezas e agrados, e o tempo engoliu o bolão da oportunidade. C... pensava, matutava, esquadrinhava e escalava o Everest de mulherão, somente em pensamentos ousados. Queria tê-la, mulher, em amasso de vale-tudo, como sabia que os dois sexos opostos têm um ímã que não deixava dúvidas a qualquer varão da sua idade. Por isso que ele morria de onanizar-se, feito um macaquinho de zoológico.

Embora não fosse matéria da sua prosa – C. mexia com serviços de telefonia, para isso fora técnico da Ericsson e de outra companhia alemã, a Siemens, além de se ter estabelecido, depois, com um negócio próprio –, como ia dizendo, embora não fosse disciplina do seu catecismo, às vezes o meu amigo puxava por mim e metia o pau no valor poético do Vinícius de Moraes.

Opinião esdrúxula lá dele, segundo o próprio esse excelso vate do amor era uma m..., sem dúvida alguma, uma m... e m... coada. Aí nem refutava, só recitava três ou quatro sonetos bem pais-d’égua, todavia sem nunca deixar de fora o indefectível “Soneto da fidelidade”, do bom botafoguense. Então, C... dava-se por vencido e lascava uns suspiros, sem pé nem cabeça. Em seguida, vociferava a toda altura, nas minhas e nas orelhas dos circunstantes, que ali estivessem:

– Magnóooooolia, esta foi o pedaço de mulher da minha vida!!!

Dava até dó e piedade, logo em mim, que sou de coração gelatinoso, olhar o meu desventurado amigo naquele estado de concomitante euforia e depressão. O homem deglutia um copo todinho de cerva. Metia-o inteiro pelos gorgomilos e suspirava em sessões contínuas. A estas alturas, os olhos dele já se iam esvaindo em Amazonas e São Francisco e Nilo de águas muito rasas. Eu via aquilo com uma comoção de cumplicidade e pensava com os meus botões: ‘um dia faço um textículo, botando essa desgramada e roxa paixão do meu amigo numa tira de papel’.

Ah, meu amigo C..., você tomou todas, de domingo à segunda-feira! Nem teve tempo de ler-me estas garatujas, tão mal traçadas. Mas sei que o caro amigo iria jactar-se em razão de ter-me lembrado de tocar na graça da Magnólia. Eu entendo vosmecê, que tomou o rumo do Andar de Cima, ainda tão varonil, sempre alegre, o seu bom humor porejando por todos os polos do corpo, bem ali pelas bordas dos cinquenta natais.

Duvido que alguém desse uma risada mais característica e gostosa do que você, oh meu sempre apaixonadíssimo rapaz. De longe, todo mundo, ao ouvi-la, já falava, amarrando o nó da certeza: “– Aquele, lá, é o C...! E, para variar, na pândega, a fazer das suas.” C..., de fato, era de uma gargalhada inimitável, que nem a voz do Agostinho dos Santos. Uma alma boa, ou, por outra, uma boa alma, não há como negar.

No entanto, sempre roxo de paixão, que não podia ser nem amor platônico, pois jamais foi sequer ao nhenhenhém carnal com a sua musa da infância / adolescência, indo até a madura idade. E lá sei eu, se algum dia o C... chegou a atingir a maturidade!

Anos e anos correram, dei com o C..., aqui, onde tenho encalhado parte dos meus dias. Uma vez, ele veio a mim, mais ufano, pois, passada enormidade de anos, soubera que a Magnólia havia-se casado e estava vivinha da silva, morando na Bahia. Uma esperança, portanto, para ao menos revê-la, já que soubera que a matrona viria visitar a terra natal, a pátria de Iracema.

C... já se foi, embarcou para sempre, e a vereança que o povo do bairro lhe outorgava, de boca, nunca se concretizou nos eitos da edilidade municipal. Mas a paixonite roxa do meu saudoso amigo, por essa moça Magnólia, por ele cantada em verso e prosa, ainda persiste às ventas de quem o conheceu e com ele partilhou de porres noturnos, lá na churrascaria do Zé Aírton, de onde, por inúmeras vezes, reboquei o meu amigo no rumo de sua casa.

Fort., 21/04/2010.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 21/04/2010
Reeditado em 21/04/2010
Código do texto: T2210243
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