MORTE NO ENGENHO VELHO

Manhã já alta, o clima serrano era uma suavidade, embalsamada a aração em ar condicionado. Fazia um silêncio sem fim de se ouvir o clarão ensolarado do dia. Minha irmã mais nova e eu, apenas nós dois na barriga da casa-grande. O resto do pessoal estava fora, aquele silêncio grande. Mas, de repente, uma grande zoeira vinda das bandas do poente do Camará.

O trágico logo toma pernas e rumo de distância, e corriam pessoas para todos os lados; gente, na estrada, ia e vinha dando a notícia do horrendo acontecimento: o Raimundo Gato matara a mulher, Luísa, no engenho velho, já de fogo morto, onde nem havia muito tempo que ali os membros da família Gato se arranchavam, sem pagar nenhum ônus.

Raimundo, dado a caçadas e pescaria, além dos “bicos” que praticava, o único macho do engenho velho que parara de moer cana e produzir safras de rapadura; Luísa, a mulher do agora homicida, uma filhinha recém-nascida, a mãe dele, por sinal, valentona e sem papas na língua, além de mais duas irmãs do Raimundo, elas já entrantes na porteira da idade das titias.

Esses aí, os citados acima, se bem a memória não me bate com os burros n’água, eram os viventes que passaram a habitar o engenho de fogo do morto do Camará. Não atino, agora, se havia algum bichano, papagaio ou qualquer vira-lata como coadjuvantes daquele elenco de humanos.

Após o estrondoso alarido dos habitantes do engenho velho, o Camará, durante todo aquele dia funesto, virou um palco de horrores, um dia de juízo. Vinha povo de todas as bandas, a fim de tomar ciência do estrago da facada nas cruzes da mulher que o desalmado Gato assassinara friamente.

Vendo-se assassino, depois de cravar a Luísa pelas costas, Raimundo Gato subiu em um altinho próximo, meteu o cabo da faca peixeira no caule de uma mangueira e correu para cima da ponta do aço. Aquilo, foi voz geral, pareceu mais uma cena de faz-de-conta, como quem diz: vou fingir que também vou comer capim pela raiz.

O Gato planejou a coisa do suicídio e lá se foi “morrer”, apontando o aço bem no peito, mas – sabidinho ele – ali na tábua do peito direito. Porque, se houvesse sido no esquerdo, e pra valer, aí a porca teria torcido o rabo. Além da faca, ele também se utilizara – ao que tudo indica, antes – de uma espingarda velha, carregada sem chumbo, apenas com pólvora, o que lhe deixou os queixos pretinhos da silva, mas sem nenhum buraco na pele. Sabidinho, o Raimundo, salvo duas vezes pelo gongo.

Mesmo assim, com aquela encenação toda de ir-se desta para a melhor, o punhal do coisa-ruim resvalou, fez camaradagem e, ao tocar no osso, o golpe do pano da faca foi apenas entre o couro e o maciço da carne. E o troço da arma de fogo, sem os caroços de chumbo, ah, também assim, vai contar história para boi dormir. Salvou-se o infeliz, que se ficou lá, de papo para cima, no sopé da mangueira, a arquejar que nem um bode, quando vai mal sangrado.

Um parente da minha mãe, lá nos cafundós do Judas, o doutor Hélio, recém-formado em Medicina, no longe Salvador da Bahia, estava passeando o seu corpo, lá dele, pelas escarpas da serra e também foi tentar um trato no peito esfaqueado do criminoso. Ora, médico noviço e querendo mostrar serviço nos eitos de mato dos seus ancestrais, ele só fazia apertar o tórax do perverso Raimundo Gato.

Lá embaixo, no engenho velho, o povo admirava o protesto da finada, que, ao inclinar-se para deixar a criancinha na rede, quando foi cravada a faca, apertara a argola da chupeta da petiz, e ninguém conseguiu retirá-la dos dedos da desventurada mãe, a não ser cortando a dita argolinha. Verdade, mesmo, isto aconteceu. Protesto de uma pobre mãe, indecorosamente esfaqueada.

Dizia-se do Gato que ele era um traste preguiçoso, que não gostava de bater um prego numa barra de sabão. Ainda assim, indolente, pois só apreciava pescaria e caçadas, o infeliz pegara um trabalho de oleiro, onde batia barro para fazer telhas e tijolos. Um companheiro dos serviços da olaria, segundo o folclore da época, lá na serra, teria batido com a língua nos dentes.

“– Raimundo, vosmecê deve de tomar mais cuidado com a sua muié, que a Luísa anda se metendo pra meu lado. Cuma eu sou seu amigo, quem avisa amigo é” – foi o veneno semeado pelo discutível amigo do Gato.

Não deu em outra: o veneno fez efeito malevolente. No desfecho trágico, todos já viram e ouviram até onde o ‘causo’ se deu. E, por fidedignidade às verdades verdadeiras do acontecido, eu só conto um caso como o caso aconteceu. Por culpa da ciumeira, tal como nas urbes grandes e modernas, uma cena de sangue lá num sítio pacífico que nem o altar de santa padroeira.

Fort., 07/05/2010.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 07/05/2010
Reeditado em 07/05/2010
Código do texto: T2243341
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