NAS ONDAS DO RÁDIO

A velhota surpreendeu o marido, de calças arreadas, tremeio as moitas de bananeiras, no quintal. Vituperou. Babou nele um despropósito de moralidades. E se fosse uma das meninas? Tavam chamando ele, lá dentro. A vista escura do sol, não pôde reconhecer ninguém. Insistiram que andasse ligeiro e tangesse o sino da igreja. Ara, pra quê? Um homem que chegara indagorinha. Carecia todo mundo ver, conhecer. Eia!

Quarta-feira braba, sol de rebentar mamona, e o sinozinho conclamando o pessoal ao povoado. Sino só tocava em véspera de missa, encomendação de defunto, ou passagem de político mandachuva. Era ver. Tirar nosfora. Custava nenhuns-nada-não.Vieram se achegando, como de ordinário, gatos-pingados, desconfiados. Os cavalos amarravam na sombra duma gameleira, encostadinha na capela. Quá, rezas de beiço praticavam, não. Em-antes, de preferência era tomar tento na venda. Um homem chegado de longe, de Belorzonte, talvez; sobraçando uma máquina estúrdia, uma caixinha que fala, apregoavam crédulos.

Chegaram outros muitos: de carros de bois, de andando a pé. Mulheres, meninos, cachorros. O que é que foi? Sabiam nada, não. Hum? Hã? Comé? Contrariado, o bate-pau voltou nas carreiras, duma pescaria. Brim joão-de-barro enfarruscado, pau-de-fogo na culatra, autoritariou. Se arrumassem em fila de procissão. Agora tinha de pagar, quem quisesse conhecer.

Ele apareceu retardatário, escoteiro. Morava retirado coisa de quarto de légua. Assuntou. Uns que já haviam entrado recontavam miúdo: o quarto, o homem, a caixa, encarreiravam mais nada difuso, não. Que assistisse com os próprios olhos, cada um. De nariz torcido, revirou os bolsos da calça. Tilintou cobre nenhum. Tomava emprestado na venda, pagando depois com carga de rapaduras? Mais bom refugar nos pés, de volta pro rancho.

Mas o compadre tinha escutado a latomia. Pança avultada jubilava politiqueiro. Entrara quando o homem tava fazendo propaganda, de graça! Por que não abreviara o passo mais um tiquinho? Carecia ver. Um mil réis por cabeça, tutaméia! Comportava dar um pulo em casa, trazer a mulher, a meninada toda, os cachorros. Raridade!

No burburinho que virou a pracinha, palpites divergiam muito. Eram pequenos-polegares falantes. Uai, capetinhas? Coisa do Cujo! Arrenego. E se fosse deveras obra do Pé-de-pato? Até o padre voltar, ficavam tendo partes com o Coisa-ruim. Pecado! Quem morre sem se confessar vai direto pro inferno. Tchibumba! Lá-se-avenha. Rompeu casa adentro sopitando os bofes pela goela. Saíssem todos conforme estavam. A mulher assentiu de pronto. Gritou os meninos-homens, numa rocinha. Os cachorros rabejaram de felicidade.

A fila serpenteava pelo arruado. Teve um redemoinhão enchendo a vista de poeira e levantando as saias das mulheres. Um cego, percebendo o aglomerado fora do corrente, cantigou esmolas. Um pinguço, de calças encharcadas, bispando fosse quarto pra defunto, repetia que nem realejo: não adianta dinheiro, que todos se vão! Um meninote falou bobagens, de jeito que as meninas soubessem. Entraram, finalmente.

Mão amparando o queixo, chapéu quebrado de banda, ele calculou. A mulher olhava de soslaio. Os meninos curiosavam custosos. Os cachorros zunhavam a porta. O estranho torceu um embiguinho da caixa, e principiou parolagem. Estacados para trás, maravilhados, desentenderam. Era um vozica espevitada, vinda de um lugar repleto de grilos e cantigas dolentes de carros de bois. Olhos arregalados todos perquiriam os internos da caixinha, por orifícios que julgavam havidos para entrar vento. Com pouco, de lá principiou uma toada bonita, sentida: com viola, rabeca, e sanfona ao fundo. A mulher duvidou que dentro, a caixa comportasse uma fazenda e tudo que deva ter. Os meninos ficavam trançando pra lá, pra cá, abestalhados. Os cachorros não haviam entrado? Ele, aborrecido, vasculhava a caixa pelos suspiros, doido mode enxergar nem que fosse chifre ou rabo, de ao menos um diabinho. Mas para desencanto seu não enxergou vivalma: nem deste, nem de outro mundo.

dilermando cardoso
Enviado por dilermando cardoso em 05/06/2010
Reeditado em 05/02/2011
Código do texto: T2301617