Tentando melhor Metáfora

Quando criança construiu uma atiradeira, dita seta, com poderes mágicos. Embora a própria construção não tenha tido qualquer toque de magia, ao contrário, talhada com muito suor, como se diz, despendido durante horas a fio, já que horas podem significar dias e meses no tempo de esforço de uma criança.

Cuidado nos olhares e mais olhares até conseguir ver uma boa forquilha, achada num galho alto de goiabeira, das melhores. Cuidado ao subir e cortar o galho ao certo, tosando na medida apropriada para o justo apoio da mão e dos elásticos. Cuidado ao remover a pele, a casca dos jovens troncos, sem feri-los nem desperdiça-los; alisá-los no frio brilhante da madeira verde, dando-lhes um breve descanso para a secagem da superfície. Depois escolher, devidamente cortados, dois bons pedaços de câmara de ar de bicicleta, firmes e elásticos, a serem atados às duas extremidades superiores da forquilha. Um pequeno retângulo de couro, macio e forte, com dois talhos onde se encaixavam os elásticos, tudo devidamente amarrado por barbante, completando o trabalho. Obra de arte! Mas é justamente a partir daqui que começa nossa história.

O menino não era em nada diferente dos outros, tinha seus hábitos perversos: gostava de, ao voltar do colégio, ir para o quintal caçar passarinhos, melhor dizendo, tentar atingi-los, matá-los. Não se considerava bom de pontaria; quando treinava colocando várias latas vazias sobre o muro, seu aproveitamento era pífio. Mas dentro de si imaginava que a questão não estava propriamente nele, a arma é que não era boa, adequada. Haveria de construir uma seta certeira, precisa, e aí sim iria poder mostrar sua pontaria. O que enfim aconteceu.

Logo nos primeiros treinos, primeiros lances, foi surpreendente, seu índice de acertos era bem superior a quaisquer escores anteriores. Porém quando finalmente saiu em campo, melhor dizendo, foi para o mato, por entre as várias fruteiras do seu quintal iniciando a caça, revelaram-se os incríveis poderes daquela atiradeira. Nem tanto com aquela rolinha arrulhando modorrenta no alto do pessegueiro, avezinha das mais bobas, fácil de ser atingida por qualquer principiante ou por seta mal feita. Até ali nada de mais!

Porém quando apontou displicentemente para a cambaxirra sapeca, assustou-se com a sua queda, inerte. Já havia deixado a muito de se desgastar tentando matar aquele passarinho. Embora tivesse a rodo por ali, e fosse praguento, cheio de piolhos, além de ladrão das comidas dos pássaros engaiolados, portanto dos mais merecedores de uma boa pedrada. Ocorre que o ladino não pára por um só segundo num mesmo lugar, saltita o tempo todo, sempre a nos perceber a tempo de não ser surpreendido. Talvez, pensou, tenha sido puro acidente, acaso. Mas se animou.

Na caramboleira percebeu movimentos por detrás de suas folhas, aproximou-se, lá estava um pardal saracoteando, era hora do tira teima, já que eis ali outro passarinho arisco. Caprichou na mira, pedrinha de brita arredondada, e zaz, lá estava o bichinho estrebuchando no socalco. Definitivamente havia ali obra além do acaso, ou estava num dia de muita sorte, ou finalmente revelou-se sua pontaria, ou a responsável era a seta recém construída. Preferiu a última alternativa.

Aos poucos pode esmiuçar os seus poderes mágicos, suas sutilezas. Não se tratava apenas de lançar os projéteis na direção desejada pelo menino, na verdade a seta tinha o poder de enfeitiçar, de hipnotizar a caça, e era através dos olhos dele, quando, após muitos olhares pela vegetação, enfim o menino conseguia ver a sua caça, ela como que penetrava nele, passava a lhe fazer parte, ele a dominava, daí a abatê-la tornava-se fácil.

Desde sempre ele não conseguia ver tudo o que olhava. Seus olhos tocavam em inúmeras coisas, porém só umas poucas penetravam seus olhos, entravam em sua mente, despertavam sua visão. E quando enfim as poucas coisas entravam dentro dele, tinha a impressão, que crescia até se tornar uma convicção, de que exercia poder sobre elas, que as enfeitiçava, as fascinava. Era o caçador elegendo a sua caça. Naquele tempo de menino inda bem que construiu aquela seta, aquela atiradeira com os poderes de completar a ligação, de fazer o contato entre ele e sua caça.

O menino cresceu, largou o quintal e ganhou o mundo. Aquela atiradeira de há muito já não lhe servia. As caças eram outras, as setas, incertas.

Mas o menino continua vivo, olhando muito, vendo pouco. Elegendo o pouco que vê como seus objetos de fascinação, de encantamento. Tentando, talvez, construir outra seta, outra atiradeira, a mais certeira! Ou, melhor ainda, revelar-se enfim sua pontaria.