Nossa Salazar

Sua entrada era a de uma generala. Os últimos ruídos e murmúrios de toda a sala eram açoitados pelo seu olhar e, esmagados, davam lugar ao trotar de suas pisadas. Dirigia-se célere até sua mesa, ao centro, frente a todos nós. Suas roupas mais lembravam os uniformes das SS, nos campos de concentração. Tudo em si era sóbrio, do cabelo aos sapatos, dos óculos ao timbre rígido e enfadonho de sua voz. Metodicamente, depositava seus livros, sua caixa de giz, sua bolsa, sobre a mesa e logo abria seu fichário proferindo a chamada, escondida atrás de suas grossas lentes.

Não perdia um só segundo de sua aula, mal acabava a chamada e já estava na lousa atirando-nos sua matéria, sufixos e prefixos, gregos e latinos, metaplasmos, ênclises, próclises, mesóclises, concordâncias, verbal e nominal, análise sintática, etc., etc., etc. Nossos cadernos logo ficavam completamente cheios, dela e de sua matéria.

Para o meu mal, e meu bem, ambos infinitos, a tive como professora nos dois últimos anos do científico, além do 4º ano ginasial. A odiava em cada detalhe e, após tantos anos de convivência, era capaz de farejá-la em qualquer ambiente.

Jamais consegui ser um bom aluno em sua matéria, sempre mediano, mais para o medíocre. Diferente do pessoal das primeiras filas, capazes até de gabaritar suas provas, como se tivessem alguma lógica e coerência. Eu bem que tentava entender, decifrar aquele enigma, aliás precisava e muito para conseguir passar no vestibular, mas de nada servia meu raciocínio lógico matemático, diante da lógica portuguesa. Quando, por vezes, achava que havia desvendado o mistério, testava em novo exercício (mas não era de física ou matemática) e nada, mais uma vez o túnel sem luz ao fundo.

Eu fazia parte do grupo da última fila, o Simões, o Nogueira, o Carneiro, o Ruizinho, embora eles não fizessem parte do meu grupo (dos que tiravam boas notas). Uma vez o Carneiro tentou atingir sua cabeça com uma pedra, em plena aula, mas errou o alvo, a mulherzinha tinha corpo fechado. Valeu-nos quase um mês de suspensão, para a turma toda, já que ninguém delatou o Carneiro, nem ele se entregou.

Meu ódio contra ela cresceu e se consolidou já no quarto ginasial, depois que anunciou publicamente um concurso de poesias, norte-fluminense, e sendo a responsável em nosso colégio, Liceu de Humanidades de Campos, para receber e inscrever nossas poesias. Timidamente, ardentemente, incentivado por amigos, entreguei-lhe uma das minhas. E fiquei dias e dias aguardando, palpitando, por alguma noticia sobre o concurso. E nada. Até que, após dias, meses, anos, sei lá o infinito de tempo por mim esperado, ao final de uma de suas aulas criei coragem e a abordei. Quando, secamente, sentenciosamente, me disse que não havia inscrito meu poema porque “ele não é para uma pessoa de sua idade”. Ainda lembro de alguns dos seus versos: “Homem, pequeno brinquedo frágil, nas mãos de criança malvada, nascido não só para morrer, porém obrigado a desejar a morte...”. Aturdido, fui para casa engolindo em seco, sem saliva, não conseguindo atinar para o real significado de suas palavras, logo ela, professora de português. Seria um elogio enviesado a uma pretensa precocidade? Ou uma suspeita sobre sua autoria? Ou o que mais? Logo ela, católica fervorosa, carola de primeira hora da igreja do D. Antonio de Castro Maia, um dos baluartes da TFP (tradição, família e propriedade), facção de extrema direita católica. Não tolerou e censurou meus versos adolescentes, indecentemente blasfemos, sacrílegos. Mas o seu gesto provocou um efeito em mim, mesmo que não fosse essa sua intenção: lançou-me de volta para dentro do meu caracol, onde por muito tempo permaneci escondido, resguardado, com meus escritos. E ninguém de minha família soube do ocorrido.

Ao final do terceiro científico me fiz uma promessa, vingança surda, bastante prazerosa. Mesmo correndo riscos, ao voltar da prova de português do vestibular, mesmo não sabendo se haveria de passar, fiz uma fogueira onde queimei, folha a folha, caderno a caderno, apostilha a apostilha, todo o seu corpo, seu espírito, condenei-a e a executei, lentamente, sadicamente, esconjurando de dentro de mim aquele espectro ditatorial.

E felizmente passei no vestibular.