UM CACHORRO DE NOME CACHORRO E JOSÉ DE ARIMATÉIA

Apresentava um ar sóbrio, tranqüilo e, sobretudo educado.

Cumprimentava a todos. Bom dia. Boa tarde. Como tem passado? Tudo bem? E a família. Vez que outra auxiliava pessoas com mais anos de vida a atravessar a movimentada avenida, assim como se oferecia para levar uma sacola de compras mais pesada. Gestantes, senhoras idosas.

Todos se acostumaram com esta pessoa. Vestia-se muito bem. Terno bem cortado, sapatos polidos. Não apresentava cabelos brancos. Acreditava-se que pintava os cabelos, mas eram suposições.

Em uma das suas caminhadas, no final de tarde, trajando um agasalho especial para este tipo de atividade, encontrou um cachorro.

O cachorro simplesmente ficou parado de frente para o senhor que por ali passava.

Sentou-se sobre as patas traseiras e esticou a pata direita, explicitando um gesto de cumprimento, que naquelas alturas do dia, era uma boa tarde.

Extasiado e perplexo olhou o cachorro e num gesto quase que automático, estendeu a mão direita e o cumprimentou o estranho cachorro. Passou a mão sobre a sua cabeça, afagou o pescoço e notou que havia uma coleira de couro com uma placa identificatória.

Com auxílio dos óculos conseguiu ler o que estava gravado.

Nome: Cachorro. Proprietário: Não constava. Endereço: Mundo.

Estranhou. Um cachorro daquele porte, se bem que, sem raça. Diferente de todos os demais que por ali passeavam, acompanhados de seus donos.

Após este fato de cumprimentar o cachorro, afagá-lo e ler a placa de metal, algo diferente aconteceu que iria mudar por total a sua vida.

Ouvia uma voz interna convidando-o a sentar em um dos bancos da praça. Sentou-se e seguido que foi pelo cachorro de nome Cachorro. Sentado e espantado com o acontecido, notou que o seu novo conhecido havia sentado a sua frente.

Iniciou uma conversação como que telepática.

Não se espante com esta situação. Como não se espantar? Será que estou ficando de miolo mole? Não! O que está acontecendo é uma forma de comunicação que os seres humanos ainda não conseguiram tirar proveito e não acreditam. Como é seu nome? O meu você já sabe. Cachorro. E o seu? José de Arimatéia. Bonito nome, um nome como que bíblico. É de fato um nome de importância na história do cristianismo. Foi um dos encarregados por Pilatos em retirar o corpo do seu amigo, Jesus, que fora crucificado e depois embalsamado, no túmulo que pertencia ao senador na época de Pilatos, respeitado homem do Sinédrio. Os judeus o chamavam de Sanhedrin.

Ai sim, foi o homem quase morre de susto. Como você sabe de tudo isto? Será que estou sofrendo alucinações? Calma. Eu ainda não me apresentei. Como assim? Desde quando um cachorro se faz apresentar? Pois é, mas o senhor está de frente a um episódio inusitado. O senhor já ouviu falar em horóscopo chinês? Já mas nunca me inteirei com mais profundidade a respeito deste tipo de adivinhação. Engano seu. Não é adivinhação. Analise só. Estamos no ano de 1995, o ano do Cão, mas prefiro chamar de ano do Cachorro. E coincidência ou não, o meu nome é Cachorro. Já estou ficando confuso. Acho melhor ir para a minha casa. Posso acompanhá-lo? Sim, mas eu nunca tive cachorro e na minha casa não tem nada que possa lhe interessar. Não precisa se incomodar. Vou acompanhá-lo pelo simples fato da sua simpatia e educação. A estas alturas a conversa de José de Arimatéia e Cachorro, já seguiam dentro de uma tranqüilidade quase que normal. Ao chegar a frente à residência, pararam e ficaram um olhando para o outro. O cachorro de nome Cachorro sentou-se sobre as patas traseiras, estendeu a pata direita e telepaticamente despediu-se. Entrou um tanto confuso. Sua mãe o esperava com uma chávena de chá inglês e pão de mel. Sentaram-se falaram sobre amenidades. Não comentou sobre o acontecido, pois se tal fizesse, sua genitora poderia entender que alguém não estava no seu estado mental normal.

Agora estava residindo com a mãe, após o falecimento do pai. Uma casa. Não uma mansão enorme. Estilo californiano. Seu pai comprara o projeto quando de uma de suas viagens aos Estados Unidos. Salas amplas, para leitura, visitas, estar íntimo com lareira, jantar para receber visitas importantes, refeições diárias, sala de chá, jardins, inclusive um de inverno, suítes enormes e anexo uma residência para os funcionários, os quais os tratava de colaboradores. Na realidade os seus colaboradores resumiam em um casal, cuja esposa era a responsável pela cozinha e o esposo pelo jardim e lavar os quatro carros. A outra colaboradora encarregada da limpeza em geral, auxiliada que era por mais uma senhora de origem alemã e uma governanta. O pai, desembargador aposentado e que após a aposentadoria constituíra um grande escritório de advocacia fiscal e tributos. Ao falecer deixou um patrimônio considerável, onde a aposentadoria era como que um elemento menor, para as despesas da mansão, viagens de inverno e recepções. Voltara à casa paterna e materna após pedido da velha mãe. Formara-se em jornalismo para a decepção do pai. Jornalismo, ora essa. Profissão sem futuro. São todos uns sonhadores, ébrios. Depois de entregarem suas matérias à redação, vão aos bares e restaurantes, ficam fumando, bebendo e comendo. E dão lugar a sonhos e fantasias, quando não urdindo algum escândalo que possa gerar matéria de capa dos jornais. Voltam para casa, quando o sol já está nascendo e dormem até quase o final do dia, quando então começam tudo de novo. Não sei qual a importância desta profissão. Respeitava o ponto de vista. Não concordava, porém não entrava em rota de colisão pragmática. Um dia, porém reconheceu que pouco ou quase nada lhe rendia esta profissão. Faculdade de Direito. Cinco anos estudando. Concurso para a Ordem. Aprovado e com louvor. Pudera. A biblioteca do pai era uma das maiores e mais atualizadas de todo estado. As últimas publicações ali estavam, e em todas as especializações que o Direito apresentava.

Com o falecimento do pai, assumiu o lugar na empresa que lhe cabia por direito de herança e além de já estar trabalhando junto com experiente desembargador.

Solteiro por convicção. Tivera lá uma ou duas aventuras amorosas, das quais só restaram cicatrizes profundas. Sexualmente ativo tinha lá seus encontros com algumas mulheres divorciadas, outras solteironas, outras viúvas. Estas sim eram um tormento. Nunca se contentavam, sempre queria mais uma, e mais uma e aja vigor para tal.

No final da tarde do outro dia, quando saíra para caminhar encontrou o cachorro de nome Cachorro a sua espera. Boa tarde e estendeu a pata direita. Que tal? Dormiu bem?

De fato havia dormido de uma maneira excepcional. Como nunca havia antes dormido.

Vamos caminhar um pouco? Vamos. E logo se iniciou a conversação telepática. Ainda não estou entendo esta situação. Como é que você consegue se comunicar comigo? Então vou lhe contar uma coisa. Acontece que eu estou re-encarnando na forma de um cachorro e para completar sou do signo do Cachorro no horóscopo chinês. Na minha vida passada eu trabalhava na prefeitura e era encarregado da carrocinha. Carrocinha? Sim. Você nunca ouviu falar em carrocinha? Aquela que apanha cachorros sem dono, que ficam perambulando pelas cidades, que viram latas de lixo e a procura de comida. Ah! Sei. Pois é. Eu era o encarregado. Apanhava diariamente uns 18 a 20 cachorros e os levava para o canil da prefeitura. Se dentro de uma semana não aparecesse o dono ou alguém que se prontificasse e adotar algum deles, não havia outra forma. Eram sacrificados na câmara de gás ou de descompressão. Nossa que coisa mais horrível. Às vezes apareciam por lá uns acadêmicos de Medicina Veterinária e a gente doava uns cachorros para as aulas de Anatomia Comparada e também apareciam uns acadêmicos de Medicina, que utilizavam os cachorros para aulas de cirurgias experimentais. Mas os demais cachorros eram sacrificados. E depois enterrados ou jogados no lixão da prefeitura. Que coisa mais triste. Pois é. Assim era a minha. E tinha família? Na realidade eu era casado. Mas vivia com a minha mulher, só por viver. Praticamente estávamos separados. Ela dormia no quarto dela e eu no meu. Eu saia às 5,30 da manhã e só voltava para casa depois do expediente. Encontrava o jantar servido. Jantava e me recolhia ao meu quarto. No final do mês entregava parte do dinheiro para as necessidades usuais e um pouco para ela comprar suas roupas e outras coisas de mulher.

E o resto do dinheiro. Bom. Eu guardava em caixas de sapatos. Caixas de sapato? É. Eu era analfabeto. E quem não sabia ler e escrever não podia ter conta em banco. E como você recebia o seu salário, pois tinha que assinar o recibo. Ora, eu escrevia com cópia.

E então um dia eu morri. Morreu? Lógico que morri se não tivesse morrido não estaria aqui re-encarnado na forma de um cachorro. Nossa que loucura. Adivinhou. Adivinhei o quê. Pois eu morri vitima da mordida de um cachorro louco. Não houve forma de tratamento. O cachorro estava com raiva. Hidrofobia sabe né? Sei. Lógico que sei. Pois quando fomos capturá-lo que consegui prende-lo com um cambão e por uma destas desgraças da vida eu cai. E o cachorro avançou e mordeu o meu pescoço atingindo a jugular. Conseguiram estancar o sangue, os médicos fizeram um trabalho maravilhoso, recebi mais que 4 litros de sangue. Mas no sexto dia apresentei um quadro típico de raiva. Foi muito triste. E então morri. Mas ainda tem uma outra história. Uma tarde eu não estava me sentindo bem e vim mais cedo para casa. E quando entro em casa, o que encontro? O que? Minha mulher totalmente pelada fazendo sexo com o vendedor de pipoca, algodão doce, mariola e maria-mole. Os dois pelados. Ali na sala. Fiquei morrendo de vergonha. De vergonha? Não ficou com raiva? Não. Fique morrendo de vergonha. De vergonha? Não estou entendendo. Pois veja só. A minha mulher ali pelada. Com os seis caídos. As nádegas mais pareciam um queijo todo furado. As pernas cabeludas e os pelos da...pubiano mais parecia uma floresta. Não tinha os dentes da frente, tanto os de cima como os de baixo. Fiquei pensando. O que o pipoqueiro vai pensar de mim? Como eu funcionário da prefeitura, respeitado na rua, podia ter uma mulher daquele tipo? Toda descuidada? Mas ele por sua vez não era lá aquelas coisas. Tinha uma perna mais curta do que a outra. Tanto é que quando entrei ele caiu no chão. Desequilibrou-se. Estava usando um banquinho...

Naquele mesmo final de dia, sai de casa. Arrumei minhas roupas, sapatos e outras coisas, as caixas de sapatos e o meu radinho a pilha, mais a televisão e fui para uma pensão perto do canil. Não dormi. Fiquei acordado a noite toda. Por causa da mulher?

Não. Os cachorros uivavam, latiam. Como que se tivessem antevendo a morte no outro dia. Fiquei ali na pensão não mais que dois dias. Comprei uma casa com o dinheiro que tinha. Mas você não sabia escrever, ler e contar como é que você se virava? Contar eu sabia. Só não sabia aqueles outros negócios. Divisão e multiplicação? É. Bem isto mesmo. Ora. Naquele tempo o dinheiro era cruzeiro. A nota cor de abóbora era de mil cruzeiros, as que tinham um tal de João VI eram de quinhentos cruzeiros, aquela que tinha o retrato igual ao que vi no Museu do Ipiranga, que depois fiquei sabendo era D.Pedro I e aquela do homem barbudo que era o pai do primeiro. Primeiro? É o tal de D.Pedro era de cem cruzeiros. Então quando fui comprar a casa e os donos pediram cem mil cruzeiros. Era muito dinheiro. Voltei para a pensão e fui separando as notinhas. Eu tinha uma divisão de papelão dentro das caixas. E em cada divisão eu colocava uma nota de acordo com a fotografia da nota. Então fui separando e contando. Fazendo montinhos.

Na prefeitura tinha uma senhora que sabia ler e escrever. Era formada no ginásio. Falei com ela para me ajudar a comprar a casa. Então ela foi comigo na casa que estava comprando. Ajudou a conferir o dinheiro. Foi comigo no tal de cartório, enfim comprei a casa.

E como estava dizendo. Depois de uns anos, morri. Interessante, morri mordido por um cachorro louco. Morri de raiva...

Mais um dia, mais conversas telepática e mais interessantes se tornaram os encontros diários.

Estava agora empenhado em escrever um livro. Melhor dizendo, estava só organizando as aulas que seu pai, gratuitamente ministrava no curso de Direito. Cada aula era antecipadamente datilografada e arquivada. Dava quatro aulas por mês. Durante quatro anos lecionou, logo após a sua aposentadoria. Mas na realidade lecionava oito meses por ano. Ou seja, 128 aulas. Era este total de aulas, acrescido de artigos publicados em jornal da Ordem e decisões positivas de suas ações vencedoras, no ramo do Direito Fiscal e Tributos.

Resolvera que naquela próxima tarde, convidaria o cachorro de nome Cachorro a vir morar na mansão. Convite aceito. Mas você come o quê? Como de tudo. Só não me dou muito bem com ração. Porque não? Um dia uma mulher deixou cair um pacote de ração, quando saia do supermercado e eu comi, comi e comi não agüentar mais. Não sabe o que me deu. O que foi que deu? Um desarranjo que quase morri. Então como praticamente de tudo, mas não sou muito chegado a ração. Quando entrou em casa com o cachorro, os colaboradores simpatizaram de tal maneira que queriam até dar banho. Algo repelido de forma bem característica de qualquer cachorro... . A velha mãe então se derreteu em carinhos. Parecia que se conheciam desde há muito tempo. Amor à primeira vista. Mas não tinha onde dormir. Não tinha uma casa para cachorro. E agora?

Não se incomode para quem sempre viveu na rua, qualquer lugar serve. Não é bem assim. Você vai dormir dentro de casa. E assim foi. A senhora mãe adorava vê-lo deitando frente à lareira quando estava muito frio e quando esquentava muito deitava ao lado, ora de um lado ora de outro. A noite dormia sobre um tapete em frente ao quarto do amigo José de Arimatéia. A vida não podia ser melhor, para quem re-encarnou na forma de cachorro. Um dia um pressentimento tomou conta. Algo estava para acontecer. Falou com o amigo e lhe disse que o seu coração estava pesaroso e inquieto. A mãe já tomou café? Não ela não tomou. Mas ela sempre é a primeira a tomar o café da manhã, acompanhado com seu mingau de aveia. Vamos acordar a mãe.

Dormira o sono eterno. Tristeza geral. Agora era o amigo José de Arimatéia e ele.

Afora os colaboradores. Passeios à tarde. Longas conversas telepáticas. Aprendia cada vez mais. E os anos foram passando. O amigo já não tinha tanta disposição para as caminhadas, preferia conversar, relembrar fatos passados. Recebia algumas primas e velhas tias, amigos e amigas sempre apareciam para jantares no meio da semana ou almoços nos domingos.

Uma noite acordou. Um clarão invadiu o corredor que dava acesso ao quarto do amigo. Ficou assustado. Latir seria a solução mais lógica. Pois cachorro quando se assusta às vezes late, quando não foge. Nenhuma e nem outra ação. Paralisado ficou. Parou frente à porta e esta se abriu suavemente. Pode notar que eram três luzes intensas. Pairavam sobre a cama quem lhe dera tanto carinho e atenção. Era de fato um homem que fazia jus ao nome de quem era amigo de Jesus Cristo. Entrou. Todo arrepiado e tremendo. Nunca vira algo assim. E então as três luzes se dirigiram para o cachorro de nome Cachorro. Flutuando por um bom tempo. Saíram de forma muito rápida. Um sono incontrolável tomou conta. Dormiu. Dormiu como nunca antes dormira.

Quando acordou, quase morreu de susto. Não morreu porque havia morrido naquela noite quando as luzes apareceram. Assim como com José de Arimatéia. Entendeu agora a razão pela qual as três luzes ficaram paradas sobre a cama do amigo e depois sobre ele.

E então uma nova situação agora surgia.

A paz, as luzes, o astral elevado e a espiritualidade faziam parte do todo. Estavam novamente se encontrando. Agora o cachorro que se chamava Cachorro, era um espírito no caminho da perfeição. O amigo José de Arimatéia trilhava o mesmo caminho, cumprira seu tempo na terra, dando amor à velha mãe viúva e ao amigo de caminhadas e conversas telepáticas.

Dias atrás quando viaja pelo interior de Goiás, ao desembargar do avião em uma fazenda, um cachorro veio ao meu encontro, parecia que nos conhecíamos há muito tempo, muito tempo, muito tempo....

ROMÃO MIRANDA VIDAL
Enviado por ROMÃO MIRANDA VIDAL em 04/08/2010
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