A brincadeira de Tchekhov

A brincadeira de Tchekhov

“Não pode ser que tenha sido o vento! E eu não quero que tenha sido o vento quem falou aquilo!”

Tchekhov

— Eu te amo, Amanda! — gritei quando víamos o mundo ao contrário do alto do alucinante looping da montanha russa.

Quando a vertiginosa viagem chegou ao fim e saímos do vagão, suados e excitados, Amanda olhou ofegante e perplexa para minha cara de tranqüilidade.

A coisa funcionaria mesmo como no conto de Tchekhov? Resolvi fazer a experiência e a vítima foi minha amiga Amanda. Sabia que não deveria brincar com os sentimentos de uma mulher, mas não pude resistir. Não sei porque, mas não resisti.

Ela sempre teve medo de montanha russa e insisti muito para que aceitasse o desafio. Ainda estava ofegante quando aceitou uma nova descida, após muita insistência. Parecia que a experiência estava dando certo.

— Eu te amo, Amanda! — gritei outra vez e ao sairmos do vagão, ela me olhava com um sorriso tenso. Eu olhava para outro lado e falava de algum assunto sem importância, arriscando olhadelas de rabo de olho.

O que passava em sua cabeça não sei, mas deveria ser algo excitante, terrível, diferente, um enigma, um tesouro de piratas, um monstro, um sussurro de fantasma. Uma mulher não consegue conviver pacificamente com a curiosidade.

— Vamos de novo?

— Mas você não tem medo?

— Tenho, mas vamos antes que eu desista! — ela suava, as mãos tremiam e estavam frias. Ela precisava saber a verdade e esse ímpeto era mais forte que o medo.

- Eu te amo, Amanda!

Ela não se conteve:

— Durante a descida você disse alguma coisa?

— Não.

- Não mesmo?

— Não, por que?

— Nada não. Achei ter ouvido alguma coisa.

Fomos passear pelo parque e brincar em outros brinquedos. Falamos sobre vários assuntos e ela me olhava sempre nos olhos. Parecia estar pescando mentiras no lago da minha alma.

— Vou ao toalete. Você me espera aqui?

- Tá bom.

Alguns minutos depois, avistei Amanda entrando num vagão para descer a montanha russa. Queria provar que não estava louca e se fosse o vento estaria livre de preocupação. Tentei imaginar seu sofrimento entre o medo e a curiosidade, mas estava além da minha imaginação.

Voltou e não falamos no assunto. Fomos embora e ela estava com cara de quem quer perguntar algo mas tem receio. Ela ainda tremia quando chegamos à sua casa.

— É por causa do medo da montanha russa?

— Para você ver como foi difícil.

— Você foi bem corajosa! Três decidas, heim?

— É. Tchau!

— Tchau!

Pelo jeito a experiência foi um sucesso.

Outro dia estávamos num show de rock e no meio de um alucinado solo de guitarra gritei:

— Eu te amo, Amanda!

Ela me olhou com seus belos olhos verdes arregalados e eu olhava para o palco fingindo não notar a sua presença. Arrisquei uma olhada e vi um sorriso maroto flutuar em seus lábios carnudos. Nunca vi Amanda se divertir tanto num show como naquele dia! Ela pulava como uma desvairada e seus cachinhos dourados balançavam lindos no colorido das luzes. Tinha certeza que a experiência foi um sucesso.

Passamos alguns anos sem nos encontrar e no outono passado ela voltou para a casa dos pais. Estava com câncer em fase terminal e teria apenas mais alguns dias de vida.

Lembrei-me dos inúmeros momentos felizes de nossa amizade, mas não lembrei da experiência da “brincadeira de Tchekhov”.

Reuni a coragem de mil guerreiros medievais e fui visitá-la. Aquela não era a Amanda que conheci. Era um cadáver que jazia numa cama com profundas olheiras num rosto afundado, lábios pálidos, braços esqueléticos, sem cabelos, sem cachinhos dourados. Definitivamente não era a Amanda. Talvez fosse um espectro ou uma leve concentração de ectoplasma.

— Amanda!

— Oi, Ricardo. Entre!

— Amanda... — balbuciei, dando-lhe um beijo na testa, com extremo cuidado para não quebrá-la.

Um sorriso passou por seus lábios como uma brisa e em seus olhos apagados brilhou uma centelha. Peguei sua mãozinha entre as minhas. Era pele e osso e estava fria, como naquele dia no parque. Entre as minhas logo esquentou.

No silêncio nossos olhos conversavam. Uma lágrima caiu rápida pelo meu rosto. Amanda esticou o braço descarnado e enxugou minha lágrima, fez sinal para que eu chegasse mais perto e falou no meu ouvido:

— Também te amo, Ricardo! — foi seu último suspiro.

Sua mãozinha esfriou lentamente entre as minhas.

Carlos H F Gomes
Enviado por Carlos H F Gomes em 19/09/2006
Reeditado em 23/11/2006
Código do texto: T244341
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