A FARDA DO MARINHEIRO

Partira um dia desse cais de saudade, Rosa Maria com o destino de se refugiar noutro país, para tentar apagar da sua mente as recordações mais penosas da sua infãncia. Nesse tempo, o povo mais arrojado da beira-mar, fazia-se ao mar e abalava na procura de melhores dias em terras distantes... Atraída pelo sonho Rosa Maria, partiu clandestinamente com uns amigos, numa frágil embarcação. Que lhe importava a vida? Se o mar lhe havia roubado a felicidade, jamais temeria agora maior tragédia.

Passaram anos, e com o tempo as suas mágoas foram-se atenuando... As saudades do bem que se teve duram sempre mais que os males... O tempo nem tudo devolve na sua acção de justiça, todavia, mais tarde, quando tudo se harmonizou, ela regressava sempre à sua velha aldeia, com saudade, pelas festas tradicionais. Na casa de seus pais, deixara uma velha arca, num velho sótão, que a mãe guardava religiosamente, sem que ninguém a abrisse. Os pequenos curiosos queriam saber o que continha a velha arca, e a velhota dizia:

- Não se mexe, são relíquias da Tia Rosa, ninguém deve lá mexer! Ela é minha filha e eu respeito a sua vontade! Aqui temos este costume! Cartas que venham em nome de cada um, também não se lêem!

- Mas a avó não sabe ler! Por isso pode abrir tudo!

- Não pode nada! Minha atrevida! A avó, só a avó, é que tem ordem de abrir!

- Ah! Isso assim, já é diferente - diz a neta com um sorriso e piscando os olhos ao irmão que também sorria malicioso.

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E assim foi, enquanto a avó viveu, ninguém abriu o velho baú.

Após a morte de seus pais, ficara na casa paterna a sua filha Gracinda, (irmã de Rosa) que tinha uma filha - a Maria Irene - que adorava a tia e estava sempre desejando que esta chegasse. Todavia, a Irene não compreendia, porque a tia vinha sempre vestida de negro. Nem a mãe, nem a tia, revelavam o porquê. Mas ela sentia que havia algo de mistério que a todo o custo haveria de descobrir.

- Será que o segredo tinha a ver com a velha arca? Que relíquias teria ela lá guardadas?

Mal tentava saber, a resposta era sempre a mesma:

- Porque gosta, porque gosto...

Certo dia, em que mais uma vez tentara fazer a pergunta:

- Tia, mas o seu traje negro, é alguma homenagem ou promessa a algum amor perdido?

Ao dizer-lhe isto, a tia mudou de cor e pelos suas faces polvilhadas de “pó de arroz” rolaram lágrimas, que lhe deixaram um certo arrependimento, pois suscitou nela um estado de desespero, no levantamento de recordações penosas e a tia tristemente apenas murmurou:

- É sim querida, homenagem a um soldado mártir! - e dizendo isto saiu da sala e meteu-se no seu quarto.

Depois desta atitude, Maria Irene resolveu seguir atrás dela, para pedir desculpas e tentar minimizar a sua dor.. Sua mãe havia saído. Estavam sós em casa. A tia tinha subido ao sótão, onde ficava várias horas. Nunca lhe dera para ir espreitar, mas naquele dia, levada curiosidade cada vez mais crescente, fê-la ir mais longe, na sua indiscrição.

Com o ouvido colado à porta, sentiu que ela chorava e passando um certo tempo, soou aos seus ouvidos, o ranger da fechadura da velha arca. Certamente, teria lá as relíquias do seu passado, o enxoval, os lencinhos, os saiotes, os corpetes, as patronas, os aventais de renda, os espartilhos, etc.

De repente, pode ver com um certo espanto, através do orifício da fechadura da porta, que a tia segurava uma roupa branca e apertava contra o peito uma moldura que beijava com os olhos rasos de água... - Não compreendia porque razão ela escondia a sua história, mas havia de saber!

Com receio de ser descoberta, desceu as escadas e aguardou que a mãe chegasse sem dizer uma palavra. Compreendera que o seu segredo, estava dentro daquele velho baú - o grande drama de amor vivido e o motivo das suas vestes sombrias. A alma da tia havia ficado de luto, perante a tragédia que ela nem queria recordar!

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Certo dia, em que as duas irmãs saíram para fazer compras, a Irene ficou em casa e resolveu averiguar o que teria o baú de misterioso, que ninguém o podia abrir.

Ali deve estar o segredo! - exclamava convicta.

Tentou descobrir a chave, o que não foi difícil e abriu o baú, onde estavam enrolado numa toalha de linho bordada, uma farda branca e um retrato de marinheiro.

Na arca estavam guardadas algumas roupas e jóias que foram relíquias do seu enxoval, duma beleza sem par. Uma saia bordada com ramos brancos, a algibeira bordada com referências ao amor, o cordão de oiro e arrecadas, o lindo avental com corações bordados, e dentro duma caixinha perfumado de alecrim, o lenço dos namorados, bordado por ela, com dizeres e frases simples que exprimiam o seu amor - ao homem que ela havia amado. Depois, num maço de cartas amarelecidas, no fundo da gaveta, ficou a saber que o infeliz marinheiro - o seu noivo - tinha morrido na Índia, aquando da tomada de Goa, em 1961, sem que a Tia pudesse realizar o seu sonho. Aquela farda era a que ele havia de levá-la ao altar...branca como branco era o vestido e a pureza das suas almas...Ela adorava vê-lo fardado!

Os meus olhos ficaram rasos de água ao ler aquelas cartas de amor cheias de ternura:..

Minha Rosa Querida

Estou cheio de saudades! O meu sonho de marinheiro é fazer de ti uma Rosa sem espinhos! Sabes que nós nos guiamos pela rosa dos ventos? Eu digo ao meus camaradas.

Não há rosas como a minha! No meu sonho de marinheiro, eu tenho uma rosa de amor verdadeiro, que me indicas o Norte, o bom paradeiro. Pois essa Rosa és tu, meu amor verdadeiro.....a minha bússola, a minha Rosa dos Ventos de Bonança, a minha Estrela...

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Meu Adorado João

Não posso viver sem ti! Na farda branca que aqui deixaste, para o día do nosso casamento estou a bordar os distintivos como pediste. Penso que ficam mais bonitos bordados por mim, sem vaidade! Quero que tudo fique a primor para esse dia. O meu vestido já está pronto. Quem me dera que termine essa missão em bem! Pois se um dia me faltares, vestirei de luto a vida inteira. Todos os dias beijo o teu retrato! Estás tão lindo fardado! Foi sempre o teu sonho ser Marinheiro! Sei que foi esse sempre o teu ideal de Menino! Foi a vida que escolheste! O teu sonho é lindo, mas penosa é a ausência dessa vida de mar! Tenho sempre medo que o mar me roube o teu amor!

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Agora compreendo porque a Tia se vestia sempre de negro... Ela tanto sonhara vestir-se de branco e que apenas traduzia a saudade do seu grande amor. Fiel ao seu amado, jurou vestir-se de luto a vida inteira e assim passou a usar sempre os trajes negros da infinita saudade!

Nem sempre os sonhos devolvem a felicidade! O seu sonho de marinheiro ficara para sempre perdido naquele caminho marítimo... em ondas de maresia infinita, em ondas que nos falam de Poesia... perdidas na dimensão do Verbo Amar!

E parafraseando o poeta....

“Por te cruzarmos, quantas mães choraram...

Quantas filhos em vão rezaram...

Quantas noivas ficaram por casar?

Para que fosses nosso, ó Mar!”

Maria José Fraqueza - Portugal

(Conto premiado)

zezinha
Enviado por zezinha em 25/09/2006
Código do texto: T248989