OS PODERES DA MULHER MAGRA

Já começo, muito em tempo, por subverter a autoria, com um plágio explícito ao Vinícius. O nosso “Poetinha” vai me desculpar se lhe pego carona, aqui, sem nem lhe pagar o devido direito autoral. E as muito magras que me perdoem.

Quando eu ainda era um caga-sebo de gente, uma das minhas irmãs – a encostada à coroa mais velha – contava-me um sonho, lá dela, que, com toda a franqueza, eu achava a coisa mais besta deste mundo. Os anos se passaram, mesmo não vendo grande figura naquilo, o fato é que o sonho dela nunca se me largou da cabeça.

Vou contar-lhes o diacho do sonho, não calculo se pesadelo, ou ainda não sei direito se foi tresvario. Mas, hoje, o fato se me avivou na mente de maneira bastante aclarada. Não o tomem por conto da Carochinha, não. Causo foi e ocorrido, de fato, por via de um sonho.

A Lu narrava o seu acontecido no mundo onírico como se verdadeiro aquilo fosse. E, segundo ela, um dia sonhou que se defrontava com uma alma, mas alma mesmo, toda de branco, visagem do outro mundo, em carne e osso.

Dormindo que estava, na melhor boa, Lu acordava, mas ainda no sonho, e dava de testa com a ilustre personagem. Então, obrando-se de medo, pois sabendo ela que estava diante da pessoa de uma alma, Lu quis empreender fuga, ao que a inusitada visitante – a alma – lhe dissera, em bom-tom, com certa intimidade:

“– Ei, mocinha, não se vá!” – talvez querendo ela sentenciar que Lu não acordasse, ainda; quero dizer, que não acordasse, agora, verdadeiramente, pois que ainda não estava a dormir? “Não se ponha em retirada, que não lhe vou fazer mal algum. Vamos bater uma caixa, um papinho a duas, pode ficar tranquila. Venha cá!”

Mas minha irmã não botou fé na conversa mole da alma. Usou de franqueza para com ela. Abriu as ferramentas do verbo e não escondeu que o que estava mesmo era com um pavor dos diachos.

A alma não se fez de rogada, continuou a pedir calma e a ponderar tranquilidade por parte da moçoila, que, naquela época distante, Lu tinha apenas os seus doze para treze anos.

Sem querer muita conversa, minha irmã apelou para a crença, toda convicta na existência de um Deus, e dono lá de cima. E, na tentativa de afugentar de vez a alma, como que a querer desmerecer os poderes dela de intimidação, tocou no nariz da aparição a seguinte questiúncula:

“– Quem é que pode mais do que Deus?” – fez minha irmã, já botando os bofes pela boca.

Aí, outra vez a alma, que parecia de uma criatura feminina, não se deu por achada, respondendo em cima das buchas, para espanto geral do interno da mana Lu:

“– Mulher magra!... Mulher magra pode mais do que Deus.”

Ora, ora!... Eu achava até uma piada minha boba irmã contar essa estória, meio lá de Trancoso e meio cá de alma mesmo.

Pois nunca matei a charada da visagem daquele sonho, nunca, de modo algum. Até hoje, para mim, essa coisa é um mistério. Será que minha irmã teria algum motivo especial para dar tanta ênfase à magreza de um cristão, ou a senhora dona alma é que teria razões de sobra para estar certa na afirmação e falar aquele disparate como coisa liquida e verdadeira?

Nunca pude atestar a veracidade da dialética da senhora dona alma. Contudo, vizinho fui de uma senhorinha deveras magra e valentona que só a gota serena. Ela era baixinha, mas avançava nas golas de marido, o Edilson, cabrão que fora seminarista e era um varapau da moléstia. Ih, mas o cabra era mole, molenga; deixava-se acachapar e molestar à beça.

A mulherzinha baixota e magra era o cão em pintura, pintava os canecos. Sempre levava a melhor quando o tal Edilson chegava todo sonso, em casa. Não atino se por ciúmes lá dela, afianço apenas que o desgraçado do ex-seminarista sempre saia perdendo nas competições de xingamentos. A mulher magricela batia-lhe na cara, berrava, lanhava-o todo, que era um despotismo.

Por conta da batoré magérrima, que fora vizinha de paredes e umbrais da minha mãe, sei, não, mas fico aqui muito a gosto a achar que a senhora alma do sonho de minha irmã, a Lu, é que sempre estivera coberta de razão. Mulher magra teria, sem dúvida, poderes fenomenais.

Quando alguém, ainda nos dias atuais, quer passar-me a perna, indo com o pé diante da mão, cheio de empáfia e arrogância, como se assim fosse um rei lá das Arábias, eu lhe meto nas fuças a pergunta maliciosa de minha irmã, formulada à alma, só que pelos avessos:

“– Quem é que pode mais do que mulher magra?”

Isto é tiro e queda; soa borbulhante como água na fervura. Em geral, o coisa-ruim que ouve tal interrogação fica sem graceza nenhuma e toca o rabo entre as pernas. Escafede-se num esfregar de olho do cenário do papo e vai é cantar em outra freguesia. Por diversas vezes, sem mentira nenhuma, já me vali deste expediente. E é tiro e queda.

“– Quem é que pode mais do que mulher magra?”

Fort., 28/09/2010.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 28/09/2010
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