CÃO APEGADO AO DEFUNTO

Um cão qualquer te rosna, late, te aporrinha e até pode – eventualmente, se for um turrão agressivo – te abocanhar, te pegar de furto, à surdina. Mas o teu legítimo cão, este nunca, jamais, este não te fará nenhum mal. A não ser que ele esteja tocado de hidrofobia. Bonzinho da silva, em perfeito estado de saúde mental, de jeito nenhum; jamais o teu cão de estimação te faria umas dessas supracitadas ingratidões ou safadagens.

Quanto a outro ser humano, eu não sei, não. Tenho cá as minhas dúvidas. E tenho-as em quantidade volumosa, se outro teu semelhante te vai aturar todos os teus achaques e abusos e boas e más vontades. Agora, cachorro amigo é fidelíssimo, totalmente avesso à parca tolerância e aos pontos de vista dos bichos humanos. E cachorro amigo é aquele dito cãozinho de estimação que tu pões no sofá; bichinho manhoso, caseiro e amoroso, nunca dado às pândegas da rua. Aliás, ele nunca sai a flanar por aí, às lonjuras de casa.

Em Palmácia, cidade serrana do Ceará, não tão distante do sítio em que vim ao mundo, mas em outro município contíguo, um vira-lata, sem expressão nenhuma, até aquele ponto, notabilizou-se pela extraordinária fidelidade ao seu dono, que havia falecido. Pasmem: isto, de paixão lá dele, cão, até quando o homem não mais habitava o orbe dos entes vivos.

O falecido fora pessoa simples, sem grande projeção social na antiga Palmeira dos Queiroz, mas o cão se lhe apegara de tal maneira que ele, cão, não admitiu separar-se do dono, nem após o passamento deste. O bicho grudara-se a ele, defunto, mesmo quando o gajo havia já embarcado para o Além.

Ninguém mesmo, na velha Palmeira dos Queiroz, vira antes animal com tanta dedicação e apego a um cristão como aquele vira-lata. Bicho pegajoso, que nem cola, aquele tipo de goma que os escolares põem nas artes manuais da cartolina. Não sei contar por que e nem as razões pelas quais o sujeito, certo dia, bateu as botas. Esticou as pernas e, até aí, muito bem; quero dizer, nada bem, como todo falecido, foi dar com os costados no campo-santo.

Já desde o velório do camarada, ainda na casa simples, o cão não saía das bordas do modesto esquife. Caixão de preço suave, como sói deles fazer uso toda pessoa simples. Pois o dedicado cão plantara-se ao pé do defunto, ficou-lhe, bem ali, no piso do cadáver, sem fazer conta de distrair-se, ir tomar ares ou fazer um giro. Não quis e fim de papo.

Hora de ir-se, choro do pessoal, grunhidos às pampas. E foi levado o caixão tosco para o cemitério. Apenas um pequeno séquito de humanos formava o acompanhamento. No rol dos que foram ao ato de piedade cristã, claro, também lá estava o pobre do choroso e já saudoso vira-lata. Com uma diferença apenas: ele não seria somente um mero acompanhante do morto. Ele, vira-lata, ia também ao campo-santo, mas dar-se-ia à hombridade de ir para ficar. Sem matalotagem, nem roupa para trocar, assim fez o cão – foi ao enterro do seu amo para lá permanecer. Lá ficaria, sempre, e ao lado do defunto.

O fato chamou a atenção do povo de Palmácia. E o cão não arredava pé de cima da cova do dono, lá dele. Deu tudo isso na mídia de Fortaleza. A notícia vazou pelos noticiosos nacionais, acho que bateram com a língua até nos microfones e papéis das agências internacionais, tipo Reuters, CBN, ABC, BBC e Al Jazira, sei lá...

Dias, semanas, não atino se a permanência do bicho, no cemitério, chegou às alturas de meses, mas com o cão ainda lá, firme, no ponto. Os familiares do morto levavam os mantimentos vitais – água e comida – para que o fiel vira-lata sobrevivesse. Cão, diga-se com acerto, fidelíssimo. Duvido que uma dama, por mais morta de apaixonada pelo cônjuge, fizesse uma façanha dessas: plantar-se à beira da cova de seu finado e amado morto. Não é que duvide da fidelidade das pessoas. Não, não é isto.

Um dia – oh perversidade suprema! –, uma infeliz mão de um desumano atirou e matou o animalzinho, lá mesmo sobre a cova. Mão desgraçada e má abreviou o sofrimento do cão. Soubesse o nome dele, eu o declinaria, aqui e agora, como um protótipo da paixão e da fidelidade a outro ser, mesmo já viajante no Infinito. Por isso que advogo que o cão alheio te rosna, te ladra, te morde e te pode arrancar pedaços, mas o teu – o teu cão de estimação, se, de fato, verdadeiramente de estimação – não te abandona nem te deixa desvalido, no oco do mundo, ou na rua da amargura. Nem que seja por um osso gordo e ainda carnudo e cheio de tutano.

Fort., 15/11/2010.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 15/11/2010
Reeditado em 16/11/2010
Código do texto: T2617628
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