A Coisa

A Coisa

Até hoje tenho me gabado de não ter medo de assombração. Isso, aprendi com meu pai, que nunca fugiu a qualquer desafio para mostrar que tais coisas não existem. Mas é ele mesmo quem conta um acontecido que deixou a sua coragem e descrença a um triz de serem derrotadas. Na década de 50, na cidade de Fronteira dos Vales, no Vale do Mucuri, a pequena cidade era berço da produção de arroz. Quase toda a produção era vendida para outros estados e o que sobrava sofria na mão-de-pilão. Junto com o fifó, “rei do fumaço”, o pilão era instrumento presente em todas as casas.

O Seu Zacarias, homem empreendedor, resolveu que já era hora de começar a modernizar a cidade e instalou, próximo à Cachoeira do Córrego Novo, a primeira máquina de beneficiamento de arroz. Para isso, ele teve que construir uma pequena usina hidrelétrica que, além de fornecer energia para a máquina, permitia à população, de vez em quando, descansar o fiel fifó. Construiu-se na cidade uma rede de iluminação pública que ficava ligada até a meia-noite. Como não havia nenhum sistema de automação, o meu pai ficou encarregado de desligar a chave todas noites.

Nessas saídas ele aproveitava para acabar com boatos de que visagens estariam aparecendo em determinados lugares. Os boateiros sofriam nas suas garras. E todas as noites, quando a cidade inteira dormia, lá estava o meu pai cumprindo dupla função: a de escurecer ainda mais a cidade e a de espantar, para longe, as assombrações que visitam as mentes dos homens medrosos.

Ele sempre dormia um pouco antes de se levantar para ir desligar a chave, mesmo porque, a rádionovela terminava muito antes e não havia mais o que fazer. Naquela sexta-feira, treze de agosto, a lua estava cheia e ele havia recebido a visita de alguns amigos. Embora o vento soprasse um pouco forte, ora trazendo, ora levando nuvens carregadas, o que fazia variar a iluminação lunar da noite, a temperatura alta esquentava a conversa dos amigos, sentados em círculo em frente à nossa casa. Talvez embalados pela singularidade daquela data e pelo aspecto bruxesco daquela noite, falaram, o tempo todo, de casos verídicos ocorridos com as forças do além. Diante do ceticismo do meu pai, os amigos sempre o lembravam de que os homens não conhecem todos os mistérios entre a terra e o céu. Ele sempre ria de tudo como se fosse uma piada.

Aquela conversa divertida, para o meu pai, fez o tempo passar rápido. Logo chegara a hora de pegar o caminho rumo à usina para apagar as luzes quase invisíveis da cidade. Os amigos se despediram e ele cuidou de pegar um guarda-chuva por causa do tempo duvidoso.

Agora, sozinho, a caminhar pelas ruas desertas da cidadezinha, ele se punha a pensar como era possível haver tantos relatos sobre coisas inexistentes. Ou será que elas existiam? Talvez existissem, mas somente para os assombrados por natureza, não para ele. Já vivera o suficiente e já havia se exposto o bastante. Se algo houvesse, ele já o teria experimentado. Assim, divagando em pensamentos, ganhou a estradinha deixando a cidade para traz.

Ao chegar no local, a lua, que clareava mais que a luz elétrica, começava a ser ofuscada por algumas nuvens carregadas, trazendo ameaça de chuva e oferecendo à noite um aspecto misterioso. O meu pai desligou as máquinas, trancou a porta e pôs-se de volta. A noite escurecera mais um pouco e o vento estava mais forte. A não ser quando entrava água no mancal e as turbinas paravam de funcionar, aquela era a rotina do meu pai. Mesmo quando a noite era totalmente escura, ele conseguia fazer o percurso sem o auxílio de lanterna, tal se tornara automática aquela função.

A cerca de trezentos metros da casa, uma ponte estreita de madeira permitia atravessar o Rio Pampã. Aquela ponte se tornara famosa porque, durante as enchentes, os mais corajosos se exibiam em saltos mirabolantes. Foram muitos os que saltaram pela última vez. Tantas mortes num mesmo lugar fizeram o povo acreditar que ali as almas dos infelizes se encontravam para tentar recuperar os corpos apodrecidos no emaranhado de pedra, madeira, arame e ossada de animais no fundo do rio. Dizia-se que elas ficavam à espreita, para se apoderar do corpo de alguém que passasse, o que acontecia, sempre, nas noites de lua cheia. O povo, nesse caso, não incluía o meu pai que, já por muito tempo, passava pela ponte todas as noites e nunca tivera a oportunidade de comprovar tais afirmações.

Foi com esse pensamento que ele ganhou a boca da ponte. Naquele momento, nuvens ralas alternavam o brilho da lua fazendo as imagens mudarem o tom da cor, variando entre o cinza claro e o escuro. O meu pai andava com a cabeça baixa pra evitar os buracos que o tempo havia feito nas pranchas de madeira. Dez passos ponte adentro. Um barulho esquisito, como se fosse uma mistura de ronco, uivo e sopro, fez o meu pai levantar a cabeça. O que ele viu era de assustar qualquer pessoa corajosa. Ali, à sua frente, estava a imagem, supostamente de um homem medindo no máximo um metro e vinte centímetros de altura, sem braços, todo coberto de pelo, com uma cabeça quatro vezes maior que o normal. A pouca iluminação não permitia perceber o corpo. Duas pernas compridas se ligavam diretamente à cabeça. Uma barba enorme chegava até os pés.

Não. Não era possível. Só podia ser ilusão de ótica provocada pela malineza da lua que insistia em brincar de esconder com as nuvens. Aquilo ali não existia, pensou meu pai. Portanto, não havia o que temer. E aquele ronco estranho, certamente tinha uma outra origem. Assim, o meu pai retomou a caminhada. Mal havia mudado o pé de lugar e aquela coisa, sem se mexer, lançou a enorme barba em direção a ele e, mais uma vez, emitiu aquele som estranho. Ao mesmo tempo, levantou a perna esquerda, fez algumas flexões no joelho e desceu, com força, o pé sobre a prancha, fazendo estremecer a estrutura de madeira.

Aquela era uma situação impensável. O maior dos céticos, o desmistificador das assombrações, o terror das almas penadas, parado diante de uma visagem. De algo que, pelo que se via, não podia existir, mas que, no entanto, se mexia e emitia estranhos sons. Havia duas opões: Enfrentar aquele monstro, arriscando viver ou morrer, ou voltar, entrar pelo mato, dar a volta, passar por dentro de um brejo e chegar em casa são e salvo. Salvo? De quê? O que contar no dia seguinte? Como encarar o próprio espelho? O que dizer à mulher e aos filhos? Como participar de uma próxima roda de amigos numa noite de lua cheia? A vida não seria mais a mesma. Se ao menos fosse possível dizer do que ele havia fugido, menos mal, mas a fuga, nesse caso, seria de algo desconhecido, portanto, serviria para reforçar tudo aquilo que ele negava. Não. Fugir, não. Ele continuaria sendo Miguel de Non. O homem a quem nem os vivos metem medo.

Com essa determinação ele se pôs a caminhar em direção à coisa. Passos lentos, corpo rijo, pronto para a luta. A cada passo a coisa se mexia, ora para um lado, ora para o outro. O encontro seria inevitável. Agora o ronco era mais baixo, mas continuava. Também, o bater de pés nas tábuas, como para ameaçar o oponente. Mais uma vez, aquela cena horrível de lançar toda a barba para frente e para os lados, deixando expostas aquelas pernas finas e compridas sobre cujas coxas repousava a grande cabeça. Mas meu pai já estava decidido. Se ali havia alguma força do além, ele estava disposto a descobrir e se reconhecer vencido nas suas convicções. Se o que estava à sua frente era deste mundo, então os seus amigos iriam confirmar o que disseram sobre os mistérios existentes entre o céu e a terra, e teriam que acrescentar que os homens não conhecem, nem mesmo, o que existe aqui, entre nós, na terra.

A coisa havia parado de se mexer, como que preparado para o ataque. Meu pai já se encontrava a uma distância que lhe permitia observar detalhes daquele corpo estranho. Naquele momento os últimos estratos escuros passaram pela lua deixando a noite parecendo dia e expondo, aos olhos do meu pai, cada detalhe daquela imagem aterrorizadora.

Diante da coisa, o meu pai entrou em crise. Os seus cabelos arrepiavam, O seu rosto mudava de cor, ele suava indignado. Como tivera a coragem de se colocar em tal situação? Mais uma vez lembrou da família e dos amigos. Lembrou de si e da sua reputação. Lembrou ter pensado em fugir. Poderia ter sido diferente. Mas não. Ali estava ele com a certeza de que, na próxima roda de amigos, ele contaria como quase fora enganado pela malineza da lua, que brinca com as nuvens, e pela bunda de um jegue.

Miguel Canguçu
Enviado por Miguel Canguçu em 17/02/2011
Código do texto: T2798412